sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

capitulo I - A Fuga

- Afinal, como é Cassandra? – Perguntou o meu pai, rabugento como sempre, assim que lhe pus o prato de sopa à frente.

- Estás a falar do quê, pai? – Perguntei-lhe enquanto me sentava no meu lugar, na pequena mesa que usávamos para as refeições, no centro da cozinha.

- Tencionas ir para que universidade, filha? – Interrogou a minha mãe, depois de engolir um pedaço de pão.

Mais uma vez, iria discutir a questão da universidade. Estávamos perto de Junho e já toda a minha turma tinha feito a sua lista de preferências… menos eu. Não queria queimar o cérebro com a universidade, precisava de trabalhar para me sentir alguém de jeito. Além do mais, percebi que ia haver discussão, pelo facto de a minha mãe me ter chamado de “filha” – esta palavra nunca fora bom sinal na minha família. Por isso mesmo, respirei fundo discretamente e disse-lhes calmamente:

- Eu estive a pensar e não quero ir para a universidade.

Silêncio. Ambos ficaram a olhar para mim, a minha mãe, no lugar à minha frente, com uma permanente má feita ruiva absolutamente falso e colocada para trás com a ajuda de uma fita roxa, deixando a descoberto um par de olhos azuis como o céu e uns lábios simétricos e carnudos pintados de um leve tom de cereja, e o meu pai, à minha esquerda, alto e esguio com o cabelo a embranquecer deixado de qualquer forma. As suas caras estavam paralisadas a olhar para mim como se fosse uma criança que acabara de dizer a primeira palavra.

Porém, esta deve de ter sido a primeira vez que disse uma palavra de que não gostaram nada de ouvir.

- O que disseste, Cassandra? – Interrogou o meu pai.

- Então, o que ouviste pai: eu não vou para a universidade. Quero trabalhar. – Disse tranquilamente enquanto pedia a tudo o que fosse de sagrado para me conceder um pouco bem grande de paciência.

- Que queres dizer com “quero trabalhar”? – Tornou a minha mãe, já a entrar no sermão. – Nós estivemos todos estes anos a puxar por ti nos estudos para ires para a universidade para seres médica! Todos estes anos, investimos em ti para agora poderes prosseguir os estudos! E agora, chegas aqui e dizes-nos isso assim, como se estivesses a dizer que amanhã é feriado?

Olhei para ela por uns segundos. Ela estava para lá de exasperada, o que tornava os olhos azuis infernais em vez de celestiais. O meu pai estava igualmente zangado, mas ele sempre foi daqueles que só explode quando chega ao limite.

Já Bianca, a minha mãe, não era assim: assim que via que as coisas estavam erradas, reclamava. Esta era uma das situações em que ela reclamava. Mas a verdade é que eles são daquelas pessoas que planeiam a vida dos próprios filhos, tirando-lhes as hipóteses de crescerem e tornarem-se independentes. Dei graças a Deus por ser filha única e por esta ser a única vez que teria de assistir a uma discussão destas.

O que ninguém sabia era que já esperava esta discussão há já muito tempo, por isso sorri-lhes descaradamente.

- Sim, digo. Vocês sempre souberam que eu não suporto ver uma pinga de sangue sem perder os sentidos. – Disse num tom alegre.

O meu pai levantou-se bruscamente e percorreu a pequena distância da mesa até à entrada para a sala de estar a largas passadas, desaparecendo escadas acima e deixando um bocado grande de pão ensopado e dentro do prato. Mais uma vez, lamentei pelo ambiente que carregava as paredes da cozinha, pintadas de verde agora seco e morto, nojento, até.

De forma geral, a casa dos meus pais é algo pequena e aconchegante, se não tivesse as paredes de cores envelhecidas e uma mobília do tempo da minha bisavó.

A minha avó era, na minha família, a parente que melhor me tratava. Sempre fui uma rapariga rebelde e independente, porém era rara a vez que desobedecia aos meus pais, por medo deles. Se não lhes fizesse vontades como esta, eles batiam-me até ter um osso partido ou acabasse enrolada sobre mim mesma no chão a suplicar para pararem entre soluços e lágrimas. Quando isto acontecia, ia parar a casa da minha avó, que me tratava com um carinho inimaginável.

Apesar das desculpas que os meus pais lhe diziam, a minha avó Janette sabia que eles mentiam. Na maioria das vezes, disse-me ela quando, aos dez anos, fui passar umas semanas a sua casa com um braço e duas costelas partidas, eles faziam-me isto porque estavam bêbados.

Enquanto reinava o silêncio na cozinha, relembrei-me da última vez que falei com a minha avó, semanas antes de morrer. Ela estava na sua alta e fofa cama, coberta até ao queixo e estava pálida como as paredes exteriores da sua casa. Apesar do seu estado debilitado, ela disse-me num sussurro enquanto os meus pais foram ao rés-do-chão, provavelmente para roubarem alguma coisa de valor para poderem vender no mercado negro, para eles poderem beber mais um pouco nessa noite.

- Querida Cassandra, antes que seja tarde de mais, eu tenho de te dizer algo. – Disse no seu tom tenro.

- Avó, não digas isso. Tu ainda vais durar muitos e longos anos. – Disse-lhe alegremente para aliviar o ambiente pesado. Ela riu-se delicadamente e tossiu um pouco.

- Tu não sabes ao certo o que se passou para eu acabar assim, mas com o tempo irás saber. Quero que saibas que assim que voar deste mundo com asas de morcego, esta casa será tua.

Houve um silêncio, triste, agradecido, e acima de tudo, surpreendido da minha parte, fraterno, feliz, caloroso e aliviado da sua parte. Como não lhe respondi, ela prosseguiu.

- Existem coisas que são do teu interesse e que te serão imprescindíveis para poderes perceber muita coisa não só de mim como também de ti mesma. Mas essas coisas só descobrirás assim que começares a viver aqui.

- Avó – Disse-lhe apressadamente. -, eu não posso aceitar esta prenda. Eu mal sei tratar de mim quanto mais de uma casa tão bela como esta…

- Enganas-te, minha neta. És muito melhor do que o que pensas, e em muitas coisas. Tu pensas que não, mas eu lembro-me muito bem dos teus esforços para me ajudares, mesmo quando tinhas o braço partido. Os teus pais não te dão o devido valor, querem que tenhas altos estudos e ajudam-te nesse ponto, mas não te deram o que mais precisaste: amor. O teu pai tornou-se amargo assim que se casou com a tua mãe, ela nunca devia de o ter visto, mas fê-lo e qui-lo logo para ela. Foi ela que envenenou o coração do teu pai. Por isso, à mínima discussão que haja entre vocês, ela vai querer ver-se livre de ti.

- Porque dizes isso, avó?

- Porque de onde veio, só se pode esperar isso das pessoas. Mas ouve, eu quero que venhas logo para aqui assim que vejas que não dá para ficares em casa. Assim que te mudares para aqui, vais entender tudo o que te disse.

- Mas… - Protestei.

- Entendeste-me? – Interrompeu, numa mistura de dureza, firmeza e delicadeza, algo sempre presente nela até ao último suspiro.

- Sim, avó.

- Prometes fazer isso? Por esta velhota indefesa?

- Oh, avó. Claro que prometo. – Disse entre lágrimas.

Voltei ao presente quando o meu pai voltou para a cozinha. Nos seus olhos acinzentados vi a mistura de tristeza e de resignação. Paul estava tão triste que prendeu os meus pensamentos na promessa imposta pela avó como se prende o cabelo com um elástico.

Percebi o meu destino ali, naquele momento. Não estaria segura em casa, tinha de sair, naquela precisa noite, mudar-me para casa da avó. Sem pancadaria, sem insultos, nem lágrimas.

- Tu és uma ingrata! – Continuou a minha mãe. Consegui reunir forças para me manter tranquilamente no meu lugar. – Não vales nada! És uma inútil, ingrata e imbecil que não faz mais nada na vida senão passear-se por aí, tal e qual as rameiras que se vêem aí nas ruas!

Levantou-se num ápice e espetou-me um murro na cara. Foi uma sequência rápida, mas ainda consegui manter-me no lugar. Com o impacto, o cabelo foi-me todo para a cara, escondendo-a com uma cortina negra. Comecei a sangrar, rasguei o lábio, mas não senti lágrimas a esbarrarem dos olhos. A frieza estava mesmo em alta.

Bianca saiu no seu passo intempestivo pela casa, abrindo e fechando a porta de entrada com uma batida incrivelmente forte. Recompus-me e assim que desimpedi o olhar de fios lisos e negros, o meu pai aproximou-se. Preparei-me para a segunda ronda, mas tudo o que recebi de Paul foi um maço de notas e umas chaves.

- Por favor, antes que me arrependa amargamente disto, desaparece desta casa e nunca mais nos procures. Se continuares aqui quando voltarmos, poderás sair daqui directamente para o cemitério. – Disse de forma ameaçadora e rude, rouca do tabaco e do álcool a mais.

“O que se passou que não percebi?”, foi o que pensei assim que ouvi aquilo. Ele saiu também de rompante e fiquei ali sozinha com um maço de notas e umas chaves à minha frente. Eram as chaves de um carro e tinham também uma nota; uma morada perto do cemitério de Old Springs, a minha pequena terra perto do Texas.

Peguei no que havia acabado de receber e galguei escadas acima assim que ouvi o carro dos meus pais a deixar o recinto da casa. Deparei-me com duas malas abertas e vazias sobre a minha pequena cama. Obra do meu pai, só para deixar tudo bem claro. Peguei na roupa toda que me veio parar às mãos e coloquei-a dentro da mala, pouco me importando se ia dobrada ou não. Também peguei nos produtos de higiene que tinha na casa de banho e pus dentro de uma grande mochila, juntamente com outras coisas como os documentos, os meus livros de bolso e outras coisas fúteis. Quando a mochila já não suportava mais artigos, peguei no portátil e pus no meio das roupas da mala maior e peguei no resto dos livros, enchendo todos os buracos, bolsos, compartimentos e lugares possíveis. Vesti um casaco de malha roxo, que combinava na perfeição com as minhas calças de ganga azuis e com a camisola rosa, com um muffin das cores do arco – íris no peito, e peguei na foto que tirei com a minha avó meses antes de ela adoecer e, mais tarde, morrer, colocando-a dentro de um bolso do casaco.

Voltei a galgar escadas abaixo e saí de casa, arrastando as malas comigo. A minha casa situava-se perto de uma pequena floresta, nos arredores de Old Springs, o que me valeu de muito na fuga. Segui perto da orla desta, com atenção não só ao que estava a pisar como também à estrada.

Quase inconscientemente, consegui chegar ao cemitério e comecei a procurar pelo edifício indicado na morada. Deparei-me com um pequeno armazém, um dos locais onde o meu pai trabalhou, trabalho que deixou por este armazém ter aberto falência. Porque me ofereceu ele esta morada? Aquele casal é, de facto, doentio e incompreensível.

Voltei a correr até ao armazém, tal como tinha feito o percurso todo. Abri a porta traseira do edifício e, depois de percorrer uma pequena distância, deparei-me com um pequeno carro, um carocha azul eléctrico, com a tinta a cair. Pus as malas na traseira do carro e abri a porta da frente o suficiente para o carro passar. Sentei-me de imediato no carro - estava um frio de rachar e o carro era confortável. Ao menos, se não funcionasse, podia passar uma noite mais confortável. Mas não podia divagar, tinha de ir para a casa da avó o mais rápido possível. Pus a chave na ignição, mas não pegou. Voltei a tentar mais três vezes, mas a resposta foi a mesma. Amaldiçoei o carro e o homenzinho que mo ofereceu.

Enraivecida, tentei de novo. Nada. Completamente passada, esmurrei o volante até me doerem os nós dos dedos. Acalmei-me e saí do carro a correr para fechar o portão. Voltei para o carocha, para o banco de trás, e deitei-me. Ao explorar as costas deste, vi que podia puxá-las para a frente, podendo assim, aceder à mala do carro. Abri a primeira mala e dei-me com um casaco comprido e quente, o suficiente para me tapar, já que o carro não trabalhava e estava exausta da fuga.

De repente, ouvi algo, no momento seguinte ao de eu ter parado, já aconchegada. Era um som mecânico, vindo do carro. Depois ouvi passos, rápidos demais para serem de pessoas. Encolhi-me e esperei por mais barulhos, mas nada mais se passou. Estive assim durante mais um bocado, mas nada. Levantei-me cautelosamente, alcancei a chave e liguei a ignição. Milagre, o carro funcionou! De novo desperta, liguei as luzes e saí a correr para abrir a porta da garagem. Voltei ao carro e conduzi o mais rápido que o carro permitia e que eu conseguia. Segui sempre pelas alternativas, pelas ruas secundárias, até conseguir chegar aos arredores na outra ponta de Old Springs, onde estava a casa da minha avó.

A casa era linda e um poço isolada do resto da rua, tinha um belo jardim murado com uma baixa sebe na frente, servindo de introdução a uma casa de dois pisos branca, com bordas, caixilhos, corrimão do alpendre e porta pintados de verde. Em pequena, chamava-lhe a “casa da esperança” e esta recordação fez um baque ruidoso dentro de mim. Tinha razão, esta casa era a minha esperança agora.

Estacionei em frente à casa, na borda da estrada, peguei nas malas, subi os dois degraus do alpendre e dirigi-me ao banco corrido que se encontrava neste. Levantei a perna dianteira mais próxima da porta para tirar a chave substituta, mas não estava lá nada. Será que me enganei? Não me parece. Tinha-a colocado ali cerca de dois meses antes, quando aproveitei um furo no último tempo da manhã na escola para ir visitar a casa. Fui ao tapete velho que se encontrava na entrada e quando estava para o levantar, ouço o rumor de uma gargalhada amorosa e a porta a abrir-se. Assustei-me, levantei-me num pulo e esperei estupidamente que saísse da casa algo assustador que me fizesse correr de novo pela minha vida e gritar em auxílio. Assim que comecei a fazer a lista de possibilidades de coisas que me assustam, pareceu-me ouvir de novo o rumor de uma voz, igualmente apaziguante, a sussurrar-me: vem, não tenhas medo. Aqui estás em segurança. Sem saber porquê, segui o conselho da voz e entrei com as malas atrás. Deixei-as no hall, tranquei a porta, cuidadosamente e devagar, e apreciei a casa.

Estava tal como me lembrava, espaçosa, luminosa, harmoniosa, misteriosa… a minha avó em forma de casa, concluindo. Avancei devagar e apreciei de novo cada detalhe de tudo o que conseguia ver com a fraca luminosidade que a noite oferecia e a casa permitia, cada linha do papel de parede, cada veio da madeira dos móveis, até a única vez em que parti algo nesta casa.

Era uma jarra francesa, oferecida à minha avó pela sua mãe, algo que me deixou com o coração partido também, mas a avó não se tinha chateado, visto que só me perguntou constantemente se estava bem. Para além de ter marcado um capítulo na minha memória, tinha deixado uma marca na borda de uma vitrina perto das escadas, que guardava coisas que dizia terem sido passadas de geração em geração.

Lembrei-me da primeira vez em que vi com atenção o conteúdo que eram variados objectos, desde de gargantilhas com medalhas de variantes símbolos, a braceletes e até ganchos de cabelo. Tinha estado a brincar no jardim nessa altura e a minha avó tinha ido ao andar de cima procurar umas calças para eu vestir, pois tinha sujado as que tinha. Assim que desceu, perguntei-lhe o que era aquilo tudo e ela ajoelhou-se ao meu lado e olhou também para a vitrina.

- Isso, minha linda Cassie, é a herança da nossa família, transmitida às mulheres há já muito tempo, aposto mesmo que há séculos.

Este dado tinha-me deixado entusiasmada, pois lembro-me de ter ficado de boca aberta a olhar para a vitrina. Ela sorriu-me e apontou para uma gargantilha com fitas de veludo que se cruzavam num laço, de cor negra, e com o mesmo brasão a prender o centro do laço. Era das peças mais lindas que estavam naquela exposição.

- Esta foi oferecida pela minha tetravó à sua filha, ou seja, à minha trisavó. É das minhas peças preferidas, apesar de gostar delas todas. Usei-a no meu casamento e também quando tu nasceste e no teu baptizado.

- Se esta é das tuas preferidas avó, porque há tanta coisa com o mesmo brasão? – Perguntei fazendo um gesto abrangente à vitrina.

- Sabes, quando começou esta tradição, as famílias da altura tinham uma espécie de símbolo de família. Apesar de este pertencer à nossa há tanto tempo que já não se sabe quanto, não sei o que significa. Tudo o que sei é que significa algo de raríssimo. E sempre foi assim: arranjávamos algo de muito importante que as mulheres usassem, adicionávamos algo que simbolizasse a mulher em questão, o brasão e dávamos à mulher da geração seguinte, fazendo esta espécie de colecção de antiguidades.

- Então, quer dizer que a tua tetravó gostava do romantismo? – Perguntei apontando para a gargantilha.

- Achas que esta gargantilha é caracteristicamente do romantismo? – Perguntou, pelo que acenei-lhe. Ela sorriu. – Sim é uma mistura do romantismo e do estilo gótico, mas aquele que surgiu depois da idade média, não a variante de hoje. Ela adorava arte.

Passei a mão pelo vidro e contemplei a montra de antiguidades por um longo momento, até as pálpebras me pesarem. Ouvi o relógio de pêndulo perto da entrada a dar a meia-noite e senti um vago arrepio nas costas, seguido de mais um fechar teimoso de pálpebras.

Subi as escadas vagarosamente e senti-me observada, mas visto que aquela casa não tinha ninguém há dois anos - exceptuando as vezes em que ia visitá-la só para rever o álbum de memórias e também para limpá-la - ignorei a sensação. Ao chegar ao corredor senti de novo a sensação de estar alguém além de mim, mas muito mais forte. Virei-me para trás, mas não vi nada. Estava escuro também, era difícil ver algo. Devia de estar tão nervosa que tinha sensações inteiramente estúpidas.

O corredor não era muito longo, tinha dois quartos grandes - mas mesmo assim aquele onde a avó dormia era o maior de todo o corredor - e tinha também uma casa de banho e uma espécie de sótão, divisão que, na minha infância, tinha prateleiras de coisas que não usava como louça, roupas e outras coisas. Era muito nova quando fui a esta arrecadação e como não me suscitou muito interesse, deixei de ir lá. Abri a porta do antigo quarto da minha avó e ignorando tudo, incluindo o facto de a cama não ter lençóis e de provavelmente estar com alguns insectos ou ratos por perto, deitei-me em cima desta e enrosquei-me debaixo do casaco comprido. Estava exausta e, apesar de estar esfomeada e a precisar de um banho, não podia fazer muito. Estava escuro e provavelmente a casa não tinha luz, água e muito menos comida que estivesse dentro do prazo.

Dadas as circunstâncias, só me restava pensar e dormir. Comecei a pensar em mil e uma coisas, mas o que me intrigou mais foi o facto de ser uma pessoa desligada do mundo e muito pouco sociável. Não sabia como encontrar emprego. Mas ainda bem que tive uns pais esquisitos, ao menos sei como resolver as questões da água e da luz, já que houve várias vezes em que não pagaram as contas e fizeram-me ir pagar as respectivas para voltarmos a ter electricidade e água canalizada.

Mesmo assim, queria ter tido uns pais que me amassem, não que me escorraçassem e quisessem que fosse alguém importante só para poderem viver às minhas custas. Queria ter tido alguém que se dedicasse a mim pelo que sou e não por outros motivos.

Deprimida, adormeci rapidamente, mas com uma conclusão a bater ritmicamente na minha cabeça, num ritmo igualmente deprimente: não tinha ninguém, apesar de o meu pai me ter posto as malas no quarto e oferecido um meio de fuga. Para além dos gestos da avó, carinhosos, exemplares para qualquer família, rica ou pobre, exemplares para Paul e Bianca - desleixados e desprovidos de qualquer sentido de humanidade -, este deve de ter sido o único favor que os meus pais me fizeram em quase dezoito anos.

Abri os olhos. Estava na cama da minha avó e sentia-me como se tivesse dormido uma vida inteira. Espreguicei-me, apreciando a luz do fim da tarde, e senti algo sobre a minha barriga, uma mão sobre a área do umbigo. Olhei para trás e deparei-me com um belo homem, de constituição média, pálido como neve, de olhos negros semi-cobertos por uma franja de cabelo cor de chocolate negro completamente descomposta, mas que lhe ficava divinal mesmo assim. Os seus lábios vermelho cereja tinham um sorriso que dissipou todos os medos do mundo. Estava apoiado num só braço e estava a observar-me a dormir. Todo ele era um monumento, uma daquelas coisas que merecia um aviso pregado na testa a dizer “perigo: bom demais para comercializar ou ser posto em exposição” e melhor, estava nu… tal como eu.

Nem me deu tempo de transparecer qualquer expressão facial, a troca de olhares bastou para ele sorrir. Foi o que os lábios escondiam que me intrigou, mas esteve longe de me assustar: a sua dentição branca era fantástica e encontrava-se ensanguentada. Uma imagem não muito bonita numa visão romântica, mas para mim, aquilo era algo apreciativo e arrepiante. A mão que estava alojada na minha barriga, fria, dura e macia, qual personificação de uma pedra polida ou de um azulejo, começou a subir até passar delicadamente pelo pescoço, brincando com a minha sensibilidade e causando arrepios sempre que tocava na clavícula. O seu sorriso rasgou-se ainda mais e deu-me um leve beijo nos lábios, que nos aqueceu a ambos. Arrastou os lábios até a uma ferida que tinha no pescoço, deixando um rasto leve de sangue, deu uma passagem na ferida com a língua e beijou essa área. Sussurrou-me numa voz ligeiramente rouca, fria e tenra ao mesmo tempo com a boca pousada no mesmo sítio.

- Tão cedo não irei esquecer o quão poderoso este veneno será daqui a umas horas, mas é irresistível amar-te e não sentir o calor do teu sangue. És viciante. – A sua respiração era fresca e perfumada, oceânica, e isto junto com os caninos aguçados proporcionou-me uma sensação que nunca sentira antes. Ele era fantástico!

Levantou a cabeça e quando me ia beijar de novo, senti algo para lá de forte e maravilhoso em mim, tão fantástico que me fez fechar os olhos e acompanhar o ritmo dos seus lábios.

Abri de novo os olhos e estava no mesmo sítio, mas sozinha no escuro da noite. Ouvi de novo passos e levantei-me num ápice, coisa que não devia ter feito pois fiquei com tonturas tão fortes que me fizeram dores de cabeça. Analisei o quarto e vi algo a passar-me à frente, perto do grande painel onde a avó afixava as fotografias que tirava. Tentei controlar-me de modo a poder dizer algo em alta e boa voz. Se estivesse ali mesmo alguém comigo no quarto, era mais do que lógico que viu-me levantar. Como sempre ouvi dizer, perdido por cem, perdido por mil.

- Está aí alguém? – Perguntei sem obter nada em resposta.

Outro movimento. Desta vez perto do roupeiro, na parede oposta à janela da varanda, à minha esquerda.

O movimento que percebi foi tão rápido que mal notei que levei um empurrão que me deitou de novo na cama. Um corpo qualquer deitou-se sobre mim, uma pessoa. Pegou na minha cara com as duas mãos e analisou-me atenta e penetrantemente, como eu fazia quando desconfiava que alguém escondia-me algo. Mas havia algo que me assustava para além de estar eminente uma tentativa de homicídio: o seu olhar ultrapassava a loucura, era selvático, era a única coisa que ressaltava acima todos os outros pormenores, como o cabelo descomposto e a tez pálida. Concentrei-me no seu olhar a fim de descobrir de onde me lembrava de um olhar daqueles; era-me muito familiar e no fundo confortava-me, talvez por ser mesmo familiar. As mãos eram grandes e rudes nos seus movimentos sempre que me remexia para me libertar, o seu olhar não se alterara nem um pouco do estado de loucura. Baixou a cabeça até ao meu pescoço e aspirou pela boca e pelo nariz.

Paralisei assustada, deixando de respirar no momento em que inspirava e fixando olhar para lá do seu corpo não muito musculado, no tecto, mas sem ver nada. Era ali, naquele segundo que iria morrer, porém não percebi porque me veio aquela ideia à cabeça, pois as suas mãos não me pareciam fortes o suficiente para me estrangular. Mas, pela forma como estava a agir, podia-me esfaquear num ápice ou fazer algo idêntico sem qualquer problema. Ao menos, não iria deixar alguém de importante, ninguém iria chorar a minha morte e morreria de boa saúde. Talvez fosse até dada como desaparecida, dadas as circunstâncias dessa noite.

- Respira, por favor. – Disse, de súbito e com delicadeza. A voz soou-me extremamente encantadora, sedutora, de outro século devido à delicadeza do pedido. Estava demasiado assustada para conseguir obedecer, pelo que ele me beijou o maxilar, inferior, perto da orelha, causando-me uma espécie de calafrio de prazer. – Tem calma, apenas quero que continues a respirar. – Insistiu.

Devagar, permiti-me respirar de novo, sentindo – e ouvindo - o coração a bater desenfreadamente. Sabia que ele também sentia a batida que teimava em rebentar o meu peito. Ele também relaxou, ergueu-se de novo e olhou-me de alto a baixo. Afastou o meu cabelo da cara lentamente enquanto eu ofegava e esforçava-me para ver mais algum detalhe dele, sem efeito. Pôs uma das mãos no meu peito e olhou-me de novo intensamente nos olhos, que também deambulavam para os lábios alternadamente. Como se tivesse vida própria, a mão teimava em acariciar-me o peito, mas havia uma espécie de indecisão nele, um debate psicológico nada simpático.

- O que és tu? – Perguntou-me de novo naquela suavidade sedutora e cativante.

- E tu, quem és? O que estás a fazer na casa da minha avó? – Tornei azedamente, apesar de a sua confusão levar a que a sua mão se mexesse como se tivesse a fazer-me uma massagem afrodisíaca sobre o peito, sexual, que me estimulava sentidos que não tinham sido estimulados em mim antes.

- Como? Tu és da família da Janette Gohstly? – Perguntou confuso.

- Respondendo à tua primeira pergunta, ladrão, sou uma pessoa para o caso de não teres reparado, e depois, sim, sou neta da senhora Janette Gohstly, sim. Agora, diz-me que raio queres. Roubar? Esquece lá isso! E falar com ela não é possível há dois anos, porque ela morreu e esta casa é minha há perto de meio ano, apesar de ter estado desabitada até hoje, sim? – Atirei. Ele ficou surpreendido, pelo que saiu de cima de mim e sentou-se na cama ao meu lado. Fixou o olhar em mim, como se estivesse a tentar lembrar-se de algo de importante.

- Cassandra, é esse o teu nome, certo? – Interrogou depois de uns segundos.

- Como?! – Interroguei chocada e verdadeiramente assustada, algo que foi reforçado pela subida de cinco tons que a minha voz fez. Ele era louco, se me queria matar. Falar comigo para me matar?! Que o faça agora, não vale a pena estar a encher chouriços!

- Eu conheci a Janette e ela falava-me de ti muitas vezes. Ela adorava-te mais do que o resto da tua família, eras a filha que ela sempre quis. – Disse num tom melancólico. Quando tentei sentar-me, foi inútil pois as tonturas voltaram, pelo que me deitei de novo. Gemi assim que vi tudo à roda e apercebi-me de que a cabeça doía-me como se tivesse batido com ela no chão ou na parede.

- Que se passa, Cassie? – Interrogou-me o meu visitante indesejável, pairando sobre mim, pondo-me uma mão na minha testa. Olhei-o com nítida raiva e surpresa apesar da visão encurvada.

- Tu não me és nada para me chamares de Cassie. Para ti, sou Cassandra Gohstly e já te disse que não há nada para roubar, por isso se não te vais embora, vou chamar a polícia. – Ameacei-o, apontando-lhe o dedo indicador, que ele pegou e fez com que tocasse nos seus lábios. A raiva dissipou-se e foi substituída pela curiosidade e pelo desejo assim que fez o meu dedo tocar nos seus lábios. Ele levantou mais a mão, arrastando os lábios até ao pulso, que arranhou com os dentes, mais aguçados do que o normal. Isto estava a ser doentio e assustador, mas não conseguia sentir conforto e segurança naquele contacto.

A segurança e o conforto eram tão doces quanto ele, tão esmagadores que dei por mim a lutar contra as pálpebras para as manter abertas. Ele cheirava e arranhava com delicadeza o meu pulso com os dentes, deixando uma sensação de calor que nunca tinha sentido.

- Dorme, Cassie. Precisas mesmo de dormir. Ficarás bem daqui para a frente. – Sussurrou contra a minha pele. O beijo que colou nela, na minha mão direita, provocou uma sensação que deu a entender que desejava mais do que um “cheirinho”, mas deitou-se a meu lado virado para mim, pousando a mão que agarrara sobre o seu peito e puxando-me para ele com o seu braço esquerdo, aconchegando-me contra ele e cobrindo-me com o casaco e uma manta muito grossa, que era a fronteira entre nós, apenas quebrada pela minha mão no seu peito gelado e duro, mas ao mesmo tempo macio. Ficou a brincar com o meu cabelo e a alisá-lo quando adormeci, sorrindo tal como acontecia quando dormia com a avó nas noites em que tinha medo de regressar a casa. Porém, desta vez não regressaria, coisa que me agradou e me fez suspirar profundamente antes de cair de novo na teia do sono com um desconhecido ao meu lado.

Na manhã seguinte, estava sozinha de novo. Onde estava o meu visitante indesejado? Que diabo de noite a minha, pensei depois de ter rebolado pela cama à procura dele.

Olhei atentamente para tudo. O quarto da avó era e continuava a ser fantástico. As paredes eram brancas e o tecto tinha sido pintado com ramificações magentas, a sua cor preferida. À minha direita tinha uma janela grande que dava acesso a uma varanda que atravessava toda a fachada principal da casa e à minha esquerda tinha um roupeiro antigo e grande, preto e com floreados fantásticos. Atrás de mim, na parede onde estava encostada a cama, tinha uma janela rectangular que ficava ao mesmo nível das costas da cama. Quando o meu avô morreu, meses antes de eu nascer, a avó remodelou o quarto e uma das mudanças foi uma janela que acompanhasse a largura da cama e a substituição da estrutura da cama de casal, com quarto postes cobertos por tule rosa em cima e por estes abaixo, fazendo grandes balões. À minha frente tinha um painel de cortiça onde a minha avó colocava as fotos que tirava. Era o seu passatempo preferido, a fotografia. Tirava fotos a tudo o que a cativasse de determinado ângulo e adorava também tirar-me fotos, pelo que este painel estava cheio de fotos minhas, alternadas com algumas connosco e outras de flores e jardins no Inverno. Neste momento não tinha nada mais a não ser a foto que tinha colocado no meu casaco a noite passada. Mas não tinha colocado a fotografia no painel, bem como não me lembro de a ter deixado cair ou tê-la mostrado ao homem que me apareceu em casa. Pelo menos, enquanto estive acordada.

Levantei-me e olhei para o relógio. Eram já duas da tarde! E ainda tinha tanta coisa para fazer! Apressei logo o passo e fui ao andar de baixo buscar as malas ao hall, mas não estavam lá. Bem, pensei, pelos vistos, tinha mesmo algo que o homem pudesse roubar. Olhei em volta com as mãos na cintura, exasperada, sem olhar para nada em especial. Voltei a subir as escadas para ir ao roupeiro ver se ainda estava algo que pudesse usar. Entrei no quarto e, antes de poder ver outra coisa qualquer, vi um bilhete na mesa-de-cabeceira, que surripiei do sítio e abri-o logo sem demoras. Estava escrito numa caligrafia tão linda que, se não tivesse a tinta típica das esferográficas, diria que tinha sido feita no computador.

Querida Cassie,

Lamento que o nosso primeiro encontro tenha sido tão atribulado. Porém, espero que tenhas dormido bem, apesar da confusão. Aproveitei a visita para arrumar algumas coisas na casa.

Tem um bom dia e até breve.

Não tinha assinatura. Vi então que esta foi uma situação caricata que nunca mais se vai repetir. Enquanto lia o bilhete, dirigi-me para o roupeiro e algo me chamou à atenção quando abri a porta. Levantei a cabeça e ali estava a minha roupa toda, organizada por peça, tamanho e por fim, por cores, se bem que o meu vestuário se resume às cores pastel. O homem esmerou-se na organização. Escolhi então um vestido comprido de malha muito aberta preta, com umas leggings e uma t-shirt cinzentas. O cabelo foi-me solto e a maquilhagem foi a mesma de sempre: eyeliner preto a contornar os olhos por completo com um toque de rímel nas pestanas e batom para o cieiro.

Desci as escadas e analisei a cozinha afim de saber o que precisava. Afinal tinha, estranhamente, luz e água, mas não tinha comida nenhuma. Saí e fui no carocha para a cidade, onde tratei de comprar comida que me permitisse fazer refeições rápidas, bem como alguns utensílios de cozinha e outros bens necessários. Também fui procurar emprego em bares ou supermercados. Como seria de esperar, ficaram com o meu contacto disseram que me ligavam a dar uma resposta.

Tinha acabado o secundário, pelo que não tinha qualquer formação profissional, apenas o secundário, mas tinha jeito em servir à mesa e em preparar comida – coisa que nos sítios onde fui vi que eram precisos com alguma urgência. No fundo, não me interessava muito o tipo de trabalho que iria ter, eu queria era trabalhar e ter o meu ordenado, ainda por cima agora que tinha uma casa à minha conta.

Mas houve um que achei bastante interessante. Era num bar relativamente perto do bairro onde agora vivia, conhecido por ser frequentado por todo o tipo de pessoas, porém era o local preferido dos estudantes à noite. Também era o meu local preferido, mas ia mais de dia, já que de noite nunca tinha companhia para beber um copo.

O patrão era uma pessoa bastante simpática e muito regionalista, preferia dar emprego às pessoas da terra e era uma pessoa muito justa, segundo se dizia em Old Springs. Era uns sete anos mais velho do que eu, alto e tinha alguma gordura, mas ficava-lhe bem aqueles cinco quilos a mais, usava o seu cabelo cor de mel ligeiramente comprido e penteado com os dedos para trás, deixando à vista uns olhos verdes muito atraentes e estava sempre vestido de calças de ganga, camisa aos quadrados, e uns ténis de corrida. Os alunos adoravam dizer que a vida dele era entre uma corridinha e outra, em momentos de triste comédia.

Foi a única pessoa que me deu uma resposta mais segura, mas ainda ia analisar a situação. A minha avó conhecia-o desde adolescente e sempre me garantiu que ele era um homem prático, rápido a gerir e eficaz.

Voltei a casa por volta das nove da noite. Estava estafada, mas antes de ir tomar um banho, fui arrumar tudo o que tinha comprado, já que tinha também de limpar bem tudo. Depois disso, fui limpar a sala e o resto do piso inferior e o quarto onde tinha passado a noite e a casa de banho, no andar de cima. Voltei a ouvir os sons abafados de passos pela casa quando, na sala, descobri que o meu visitante tinha-me colocado os livros na estante principal da sala, em cima do local para a televisão. Ouvir aquilo voltou a assustar-me, mas não se repetiram muitas vezes.

Foi um dia muito vago, mas mais do que isto não podia esperar no meu primeiro dia sozinha.

Porém esperava pela visita do desconhecido, mas não me veio visitar de novo. Talvez fosse mesmo um ladrão, ou um assassino, e não tivesse conseguido arranjar forças para fazer a sua tarefa. Mas isso não explicaria a arrumação que me fez com os meus pertences, pois não?

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