sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

capituloII - O Segundo Econtro

Passaram-se dois dias entediantes quando recebi uma chamada no meu telemóvel, por volta do meio-dia. Era o patrão do café estudantil, Bryan, para me avisar de que o emprego era meu. Engasguei-me assim que ouvi ele dizer: “estou a ligar-lhe porque queria comunicá-la de que conseguiu o emprego.”. Tanta delicadeza e formalidade até me levou a questionar se era a mesma pessoa com quem tinha falado um par de dias antes, mas não me intrigou o suficiente para declinar o pedido. Aceitei começar logo no dia a seguir, ao fim da tarde e hora do jantar, precisava de pôr tudo em dia, preparar todas as formalidades precisas para a casa ficar em meu nome e pagar as contas.

A minha casa, entretanto, iria esperar um pouco até ter uma televisão, telefone, electrodomésticos para além do velho frigorífico que ainda trabalhava como se tivesse apenas uns meses e todas a tecnologias mínimas.

No entanto, estava feliz com tudo: tinha uma vida minha, que podia gerir sem ter medo de nada e estava tudo a endireitar-se. Apenas havia uma pequena mancha na minha felicidade: o desconhecido que entrou na casa na noite em que me mudei para casa da avó. Não cheguei a saber nem o seu nome, mas havia algo nele que me cativava.

Neste período, tentei repescar da minha memória tudo o que pudesse ser pormenor dele e comecei a desenhar, mentalmente, uma espécie de retrato robot. Os seus olhos eram, quando não pareciam loucos, um pouco estreitos e de tonalidade escura, o nariz direito, perfeito e sem detalhes próprios, não tinham nenhuma curvatura especial, o que lhe dava ainda mais o aspecto de uma estátua do tempo do império romano ou uma obra de renascentista e alusiva a algum Deus do Olimpo. O cabelo era liso e um pouco comprido, o suficiente para a franja poder-lhe cair ligeiramente sobre as sobrancelhas, que, por acaso, eram um pouco grossas, espessas e de um castanho normal, ao contrário do cabelo que era uma mistura de reflexos de chocolate negro com chocolate de leite. Os lábios foram o que me deu, estranhamente, mais gosto em analisar: eram simétricos e carnudos, talvez de um tom muito pálido. Não estava certa relativamente às cores pois estava muito escuro e tudo o que consegui apurar era que tinha uma tez muito pálida para alguém numa terra perto do Texas e cabelo, olhos e sobrancelhas escuros, acabando por formar uma paleta de tons de castanho.

Estava no meu quarto pôr os cortinados na janela que acedia para a varanda no mesmo dia em que recebi a chamada de Bryan, quando sinto um movimento no quarto. Paralisei e esperei por mais algum movimento, sem olhar para trás. Em vez disso, obtive em resposta a voz de alguém.

- A Janette, tal como todas as mulheres da tua família, tinham uma queda muito grande para as artes. A tua avó tinha para a fotografia e decoração.

A voz era linda, sedutora, encantadora, com cadências do século passado. Era ele, o homem que me pregou um susto de morte há duas noites! Mas não queria que ele descobrisse que eu estava contente por voltar a vê-lo, pelo que me obriguei a continuar a colocar o cortinado, tal como se não tivesse ouvido nada.

- Boa escolha de cortinados, Cassandra. Combina muito bem com o tule da cama. Também herdaste o jeito para decorar. Já era altura para esta casa voltar à vida, não imaginas o quão deprimente tem sido ver estas paredes vazias.

A alegria passou directamente para irritação. Tinha de aproveitar a oportunidade para saber quem raio era ele, como conseguiu entrar em casa e de onde conhecia a minha avó. A raiva fez-me acabar com a minha tarefa muito mais depressa, por isso saltei do banco, ajeitei melhor os cortinados de forma a que eles ficassem cerrados. Aproveitei para espreitar para a rua, afim de saber se estava algum carro à frente da casa. Foi quando o ouvi de novo.

- Eu não preciso de carros, sou muito mais rápido do que eles. Essa minha qualidade também me valeu de muito para poder ligar a água e a luz a esta casa depois de estar contigo na outra noite.

Voltei-me para o encarar… e vacilei sobre mim mesma. Ele era fenomenal, tal como tinha conseguido ver na minha memória, com o bónus de que tinha uns vinte ou trinta centímetros a mais do que eu, em altura, uma constituição física boa para me deixar de boca aberta e uma tonalidade estranha nos olhos, pareciam cor de vinho perto de ser trespassado pela luz. Estava encostado ao poste nos pés da cama do lado da janela, com as mãos metidas nos bolsos das calças de ganga azuis e descaídas. A t-shirt era preta e tinha escrito a amarelo “esta camisola é só para dormir” com letras cómicas, mas para mim, o mais cómico era que o espaço que as calças e a camisola deixavam à vista tinha um pouco dos boxers azuis-escuros e de pele, pálida.

Os olhos vermelho escuro olhavam-me de forma geral e um pouco atrevida. Tinha vestido uma mini-saia lisa azul clara e uma camisa às riscas pretas e vermelhas verticais com um botão desabotoado a mais, oferecendo àqueles olhos um decote maior, grande demais para o meu gosto.

Abotoei à pressa o botão e disse-lhe:

- Deves de estar a achar que estou aqui para mostrar algo.

- Já vi muita coisa, mas por acaso, estava a gostar. – Tornou. Atrevido, respondão, directo. Gostei, até.

- Como conseguiste aparecer aqui sem eu dar por nada? Eu tenho a porta trancada. – Perguntei a fim de desviar o assunto.

- Eu conheço bem a casa, mas obrigada pela chave que deixaste debaixo da perna do banco corrido do alpendre.

Aproximei-me dele. Um erro para ambos, já que fiquei com vontade de estar ainda mais perto dele e o olhar dele vagueava dos meus olhos para os meus lábios e para o meu peito.

- Como sabes tanto sobre a minha família?

- Já te disse, conhecia a tua avó, através do teu avô, Jacques. Eu era o melhor amigo dele.

- Não me lembro de o meu avô falar de ti. – Tornei. O meu avô morreu quando tinha doze anos e nunca o ouvi falar de algum amigo cuja descrição encaixasse neste homem. Os seus olhos seguiram o movimento dos meus lábios quando falei.

- Eu fui com eles quando viajaram para França e Bélgica e acabei por ficar pela Europa até o Jacques morrer.

- Como te chamas, mesmo? – Perguntei. Voltou a seguir o movimento dos meus lábios. Meio segundo depois de ter falado, houve uma mudança nele, uma espécie de formalização de um desejo, que ele tentava ocultar com todas as forças, mas não conseguia ocultar o rasto.

- Lewis. – Respondeu após uma hesitação tranquila. O tom que usou para dizer o seu nome foi fantástico, como se estivesse a dizer algo que sabia que nunca iria esquecer, que ambos nunca iríamos esquecer nesta vida. Um nome raro na actualidade, antigo tal como o seu discurso e o seu comportamento.

- Tu fugiste de casa? – Perguntou, depois de uns segundos de silêncio, tempo que tomou para me analisar. Passou inconscientemente a mão pela minha cara. Estava fria e era suave como veludo e dura como pedra. A sensação que me provocou foi também uma mistura antagónica: retracção e desejo. Sorriu e voltou a dirigir o olhar aos meus lábios quando falei.

- Sim, pode-se dizer que fui expulsa de casa e que fugi. Esta casa é minha daqui a umas semanas, quando fizer dezoito anos, e vim para aqui porque a minha avó ma deixou em testamento e porque era o único abrigo que tinha… e que ainda tenho. – Chegar a esta conclusão e dizê-la em alta voz foi difícil de digerir, pelo que desviei o olhar do de Lewis, que não desviava a sua atenção de mim. Outra característica que acrescentei à lista que só então tinha reparado que estava a fazer: era uma pessoa atenciosa e interessada, dedicada às pessoas.

Ao ver-me desviar a cara para a janela grande, esperou que acabasse de falar para me pegar no queixo e virar-me a cara de novo para a frente da sua, calmamente, como se o movimento fosse intencional da minha parte. Voltei a sentir o medo de duas noites atrás misturado com o conforto. Voltei a ficar sem ar ao fintar aquele par de olhos sangrentos e assustadores, quase com luz própria, contrapostos com o cabelo cor de chocolate negro misturado com chocolate de leite, que de repente me pareceu apagado devido à vida própria do olhar. Ficámos a olhar um para o outro durante algum tempo, não sei quanto, mas nunca consegui abstrair-me do medo daquele olhar o suficiente para voltar a olhar para outra parte ou falar. O que, no fim, me assolou foi uma vontade enorme de o abraçar e beijar. Ele era belo demais para se estar por perto e não explorar as qualidades dele.

Aproximei-me ainda mais dele, quase inconscientemente. Lewis imitou-me e quando estávamos mais perto, baixou a cabeça um pouco, deixando um espaço reduzido entre as nossas caras.

- Não venho reclamar a casa. Muito pelo contrário. Só quero o teu bem e a tua segurança, e estarei nesta casa se me quiseres, Cassandra. E acho que é isso que queres. – Disse-me quase num sussurro, que tornou a sua voz ainda mais sensual. Sorriu. Os seus dentes eram perfeitos e brancos. Vi jeitos de ceder, pôr-me em bicos de pés e beijá-lo tão loucamente como a minha imaginação, agora entorpecida, permitia. Talvez até para algo mais. Algo no meu corpo começou a trabalhar, mas não percebi na altura o que ou o porquê.

A outra mão, a que tinha livre, rodeou-me a cintura, puxando-me lentamente para perto dele, colando-nos naquela parte. O seu corpo era frio como tudo, mas não me importou isso, até me estava a saber bem, já que parecia que estava num estado febril e, simultaneamente, saudável e viciante. As minhas mãos pousaram no seu peito, fenomenal, não muito definido, mas perfeito ainda assim.

- Não. – Disse-lhe num tom baixo.

- Não? – Retorquiu ele, franzindo um pouco o sobrolho, que lhe dava um ar engraçado, principalmente quando sorria ao mesmo tempo. Arrancou-me um suspiro tranquilo e apaixonado antes de falar.

- Quero dizer, sim, quero que fiques. Esta casa é demasiado grande para uma pessoa como eu, vai ser bom termos alguma companhia. – Expliquei. Ele voltou a prestar atenção aos meus lábios

- Sim, tens razão. – Concordou, pondo o meu cabelo atrás da orelha direita. Voltou a sorrir, expondo a sua beleza num expoente máximo, capaz de me levar à loucura. – A tua companhia faz-me bem.

Antes de responder, vi o olhar a tornar-se ligeiramente mais intenso, prestes a entrar no estado de loucura da outra noite. Medo. Sem conforto. Mudei o rumo da conversa para o distrair. Se o conseguisse, por pouco tempo que fosse, podia conseguir fugir dele antes que fosse naquela noite que me atacaria.

- Tu estás bem? – Perguntei.

- Muito bem. Porque perguntas? – Disse-me.

- Olhas sempre para os meus lábios quando falo…

- Isso é porque gosto muito de te ouvir e, permite-me que te diga, tens uns lábios fantásticos. – Interrompeu-me, passando com o polegar no lábio inferior numa pressão doce e forte, talvez apaixonada, mas de certeza avassaladora. Demorei uns segundos a digerir aquilo até continuar com a minha frase.

- … E tens os olhos numa cor que me assustam um pouco. – Conclui, depois de engolir tanta baba.

Aquela observação funcionou nele tão fortemente como um estalo, ou neste caso, um murro bem dado naquela cara indescritível. O seu olhar tornou-se confuso, apesar da electricidade vermelha. Olhou-me atentamente e sem pestanejar antes de me pedir explicações.

- Estás a falar do quê? – Perguntou, numa voz rouca e surpreendida. Reparei noutro pormenor: os dentes, brancos e perfeitos, pareciam estar mais aguçados.

- Os teus olhos estão num tom vermelho tão eléctrico que parecem ter luz própria. E os teus dentes estão mais agudos. O que tens?

Ele afastou-se relutante e rapidamente de mim, pondo uma mão no pescoço, como se estivesse agoniado. Depois de olhar para baixo durante um bocado, virou-se de costas para mim e levantou a cabeça. Era como se estivesse a tentar recuperar de um ataque de asma, tentava de novo respirar, muito profundamente. Aproximei-me dele para saber se podia ajudar. Estava prestes a tocar nas suas costas, um pouco trabalhadas, quando me levantou a mão esquerda para me parar, sem se virar para mim.

- Não me toques agora Cassie, por favor. – Pediu.

- Estás bem, Lewis? – Perguntei.

- Vou ser sincero: nem por isso.

Seguiram-se uns segundos, muito poucos segundos, até ele falar de novo.

- Olha, eu preciso de sair para ver se recupero um pouco. Aproveito e trago os meus pertences. – Disse agoniado e com alguma pressa.

- Claro, eu fico à espera para te ajudar. – Retorqui de imediato, pensando aonde ele poderá estar hospedado. Em casa de outro amigo? Num motel?

- Não é preciso, mas obrigado. Trata de dormir. Até logo. – Tornou, docemente, avançado para o corredor.

- As melhoras. – Disse, mesmo antes de ele sair do quarto.

Ele virou-se para me encarar de relance. O seu olhar estava louco, tal como na primeira noite, apesar de estar presente o leve sentimento de… amizade? Agradecimento? O medo paralisou-me dos pés à cabeça, tornando-me fria num segundo. Voltou a olhar para a frente e disse, hesitante:

- Obrigado, de novo. Boa noite.

Esperei pelo som da porta da entrada a fechar, mas demorou muito para quem tinha e sair para melhorar a sua… indisposição? Que tinha ele para ter aquele olhar doido, demoníaco, como se estivesse no carnaval ou no halloween? E que se passou para ficarmos, de repente, tão perto de… os beijarmos? Termos sexo?

A ideia de, pelo menos, beijar alguém, ainda por cima na casa que pertencera à minha avó, uma mulher muito respeitada nos bairros das redondezas habitados por famílias decentes e igualmente respeitadas, tornava-se até repugnante. Está certo que nunca experimentei sequer beijar alguém por ser uma rapariga considerada esquisita e delinquente, para além de ser filha de alguém que prestava grande devoção às bebidas alcoólicas e sabe-se lá mais o quê, mas mesmo assim, soava-me a algo incómodo.

Porém, Lewis conseguiu afastar essa ideia da minha cabeça, substituindo-a por sentimentos. Atracção e desejo. Era isso que ele despertava e estimulava com grande à vontade e naturalidade.

- Ganha juízo, rapariga. – Disse para mim mesma. – Das outras vezes em que andavas atrás dos rapazes, eles faziam exactamente a mesma coisa contigo: despertavam-te o interesse e o desejo e depois de te humilharem perante todos, deitavam-te fora.

Irritada, amaldiçoei-me por ter permitido que Lewis se instalasse na minha casa. Mesmo assim, fui ao quarto pequeno e procurei no roupeiro lençóis e fiz-lhe a cama, não por amabilidade, mas para descarregar aquela raiva. Apetecia-me apertar o pescoço daquele homem fantástico e sensual, por ser intrometido, invasor, mulherengo e… e filho da mãe dele, que não deve estado muito presente na altura de lhe dar alguma educação.

Depois de a cama estar feita, infelizmente com perfeição e sem nenhum vinco, fui tomar um banho, longo e relaxado. Vesti uma t-shirt preta e uns calções às riscas pretas e brancas. Estava uma noite quente e no dia seguinte iria começar o meu trabalho depois do almoço, por isso, decidi ir ler um pouco depois de uma bela refeição.

Estive um bom bocado a preparar uma pizza quarto estações, o que foi bastante relaxante. Foi quando estava a tirar o meu jantar do forno que a porta da entrada se abriu. Peguei na faca mais próxima o mais silenciosamente possível e esperei que a pessoa avançasse. A cozinha tinha uma ilha ao meio, onde tinha todos os objectos à mão, e também colocado a pizza, o que me valeu para me esconder, colocando-me de lado junto à ilha, ocultada pela ombreira da porta.

Esperava toda a gente, menos por Lewis, que entrou na cozinha devagar, o que me fez virar de rompante para ele e pôr a faca entre nós. O seu olhar era duro, mas assim que me viu, sorriu-me abertamente, mostrando-me a dentição fantástica emoldurada por um par de lábios rosado e apelativos e um olhar castanho-escuro, doce e misterioso. Tão meigo como a sua actual expressão facial me parecia.

- Uma pergunta: tu pensavas que estavas a ser assaltada? – Perguntou num tom jocoso. Posei a faca no suporte e peguei num prato e talheres para comer a minha pizza, pousando de seguida na ilha ao centro da cozinha cor de mel.

- Tu pensavas que esperava pelo namorado para ir curtir a noite? Deves de estar a gozar comigo. – Respondi enquanto tirava uma garrafa de gasosa do frigorífico.

- E tens? – Perguntou, sentando-se à frente da pizza.

- Achas que uma pessoa como eu arranja namorado tão depressa como hóspedes do nada? – Tornei, colocando a garrafa e um copo na mesa com pouca delicadeza. Olhei para onde se tinha sentado e perguntei-lhe: - Queres também comer?

- O que é mesmo? – Perguntou correspondendo-me ao olhar com uma dose de travessura.

- Pizza quatro-stazzioni. Acabadinha de fazer.

- Prefiro ver-te comer. Não gosto muito da quatro estações. Está à vontade.

Sentei-me à sua frente e coloquei uma fatia no meu prato. Comecei a comer e ele ficou a ver-me durante um pouco. Depois de engolir o primeiro bocado, prosseguimos a conversa. Apesar de tudo, era bom falar com alguém que parecia ser tão solitário no mundo quanto eu era agora.

- Tu tens medo de estar sozinha em casa? – Perguntou. Parei durante um segundo, a olhar para o prato. Tocou no ponto mais sensível em mim na altura. Era lógico que tinha! Praticamente, fui expulsa de casa sem motivo e estava numa casa que não era minha! Melhor, ainda era menor e não sabia se os meus próprios pais tencionavam fazer-me algo! Queria o quê? Que estivesse tão feliz como se tivesse ganho a lotaria?

- Não! – Respondi.

- Mentes. – Tornou.

- Não quero falar sobre esse assunto.

- Porquê? – Insistiu. Vi no momento que ele não iria desistir. Mas um teimoso nunca teima sozinho.

- Porque essa pergunta leva a uma resposta que, por sua vez, me leva a memórias que não quero pegar. Além do mais, quero aproveitar esta pizza sem assuntos azedos.

Mais um pedaço. Mais um silêncio, desta vez, muito incomodativo.

- Então, já estás melhor? – Perguntei.

- Sim, estou, obrigado. – Respondeu, calmamente e com um sentido escondido que não captei no momento.

- Eu deixei-te já a cama feita no outro quarto. Se quiseres, posso-te ajudar a arrumar as coisas. – Ofereci.

- Obrigado. Eu posso fazer isso sozinho. Deves de estar exausta.

- Hmm, nem por isso. Amanhã só entro ao fim da tarde, posso ficar de pé até mais tarde.

- Trabalhas?

- Sim, no bar a duas ruas daqui, aquele aonde vão muitos estudantes, mas como ainda não sou maior, só posso trabalhar poucas horas por dia.

- A sério? Quando atinges a maioridade, afinal?

- Daqui a um mês, sensivelmente. – Mais uma pausa, desta vez para a segunda fatia. – E tu?

- Desculpa. Eu, o quê? – Olhei para ele. Parecia que se tinha distraído com algum devaneio.

- Parece que não és propriamente de Old Springs. Que fazes?

- Ah, pode-se dizer que sou investigador. Uma espécie de detective privado, se preferires.

- Posso perguntar-te a idade?

- Vinte e três. – Respondeu após uma hesitação suspeita.

- Não tens família? – Disse, sem pensar, surpreendida.

- Os meus pais morreram há três anos num acidente. A minha família era, digamos, abastada e eu herdei tudo.

- Lamento pela perda. Deve ser duro perder ambos os pais de uma vez.

- Na altura, foi. E tu, também perdeste os teus?

- Nunca foram bons pais. A minha avó é que tratava de mim sempre que vinha para cá, por isso é que vim para aqui. Mas estão vivos e, talvez a esta hora, já estejam a beber para mais uma bebedeira.

De novo silêncio. Já me estava a irritar de novo estar num silêncio aparentemente incomodativo e muito observador, mas ele era, para todos os efeitos, um desconhecido e nunca fui boa a travar amizades.

Comecei a lembrar-me do ambiente em que tínhamos estado antes, no quarto. Era, de facto, bom que ele não estivesse naquele estado doente. Apenas era preciso mais um empurrão para me ter colado a ele. Lewis era daqueles homens que bastava olharmos para ele e ter uma vontade de ir para a cama com ele. Mas ainda era uma rapariga com respeito a mim mesma e ele era seis anos mais velho do que eu. Decerto que ele não iria querer nada com uma rapariguita como eu, ainda por cima em fuga, sozinha e com fama de ser delinquente.

Pensar nisto deixou-me um pouco em baixo, pelo que comi apenas duas fatias de pizza. Levantei-me e ele ajudou-me prontamente a arrumar o que tinha sujado em silêncio.

- Queres falar? Não pareces muito tranquila. – Disse, passado um momento.

- Não. Eu costumo pensar em várias coisas ao mesmo tempo, é por isso que eu nunca pareço tranquila.

Assim que digo isto, passo-lhe o prato que tinha usado. Ele toca-me na mão e algo chama-lhe à atenção. Pousa o prato e pega-me na mão, virando a palma para cima e analisando a cicatriz que tinha no braço, mais propriamente a da operação que tinha feito quando havia partido o braço por este ter sarado mal da fractura.

- Que se passou? – Perguntou numa mistura de serenidade e raiva, passando com a mão fria pela minha cicatriz.

- É uma longa história. Em pequena, caí e como o osso tinha sarado mal, tive de ser operada para me recolocarem o osso no sítio. – Disse balbuciando. Ele tinha topado a mentira.

- Estás a mentir. – Sussurrou, olhando-me com meiga intensidade no mais fundo dos meus olhos. – Não caíste.

- Não. – Suspirei. Arranquei o meu braço das mãos dele bruscamente e continuei a minha tarefa, tentando conter as lágrimas. Estava a ser duro relembrar as vezes em que a minha mãe, principalmente, me batia.

O silêncio prolongou-se até termos acabado a tarefa. Respirei fundo e olhei para a janela da cozinha, mesmo acima do lava-louça. Esta oferecia como vista o pequeno quintal onde a minha avó tinha a sua horta. Como seria de esperar, não sabia o que fazer com aquela parcela de terreno fértil. Talvez plante ervas para chá, ou qualquer coisa que tenha alguma finalidade. Lewis pousou uma mão no meu ombro.

- Isso incomoda-te muito.

- Muito mesmo. Foi nessa altura que a minha vida se complicou. – Comecei a sentir-me enjoada e muito perto do vómito. Logo de seguida, comecei a sentir um aperto no pescoço tão forte que estava quase a impedir-me de respirar. Voltei-me para o lava-louça para o caso de ter de vomitar, agarrando-o com força, olhei para a janela e vi, apesar de não estar a ver muito bem, duas coisas vermelhas e muito brilhantes num dos cantos do jardim, o mais escuro naquela noite de lua cheia, mas sem qualquer luar.

As nuvens eram a fronteira entre o firmamento e a Lua, mas mesmo assim, aquelas coisas faziam-me lembrar algo que já tinha visto. Era um par de olhos vermelhos com luminosidade própria, muito mais fortes do que os que Lewis tinha há um par de horas atrás. Alguém estava a observar-nos mas Lewis não podia ver essa pessoa, pois esta estava num ponto que a ocultava do campo de visão dele, no local onde estava. Ele olhava-me com preocupação e perguntava-me se estava bem, mas a sua voz era simplesmente um barulho de fundo naquele momento. Tudo o que ouvia eram várias vozes ao mesmo tempo. Não, era apenas uma única voz, de uma mulher, que mudava de tom e tema tal e qual uma pessoa faz quando tem muita coisa em que pensar ou estivesse a imaginar situações. Tal e qual como se estivesse a ouvir os pensamentos de alguém. Pela sua curvatura, o olhar era de prazer.

As nuvens arrastaram-se um pouco, permitindo-me ver melhor aquela pessoa. Era uma mulher de cabelos louros quase platinados, compridos e aos canudos, cara redonda e dotada de um corpo cheio de curvas, capaz de fazer inveja a todas as mulheres do mundo toda ela era uma personificação da luxúria e maldade, como se alguém como ela pudesse conter, e absorver infinitamente, todo o mal à face da terra, alimentando-se deste e assim continuar viva. Os lábios foram rasgados por dentes afiados e tão brancos como os de Lewis, mostrando-me um sorriso que me fez arrepiar e sentir o aperto no pescoço a aumentar gradualmente.

Aquele vislumbre não durou muito, apenas a passagem rápida de um intervalo de uma nuvem para a outra, ocultando-a de novo, excepto os seus olhos vermelho sangue e agora o seu sorriso malévolo e perverso. Ela sabia que só eu estava a vê-la e aumentou a pressão no pescoço. Não conseguia aguentar aquilo durante mais tempo, mas também sentia uma força qualquer que me impedia de desviar o olhar. Se era aquela mulher que me estava a controlar, estava a sufocar-me ao mesmo tempo que o momento de vomitar se aproximava. Eu podia morrer das duas coisas ali.

- Cassie! O que tens? – Perguntou Lewis preocupado. A voz dele de repente tornou-se clara como água para mim e deixei de ouvir os devaneios de alguém. Os olhos da mulher semicerraram-se ainda mais e os lábios rasgaram-se ainda mais no sorriso. As luzes começaram a tremeluzir, prestes a falhar.

Aparentemente, tudo estava a correr como ela queria. Também conseguia ver a brancura do resto dos seus olhos, mas no momento em que ia falar, os olhos deixaram de ser vermelhos rodeados de branco, tornando-se extremamente vermelhos.

- Alguém está a observar-nos. Eu não consigo tirar os olhos de cima dela e sinto que me estão a apertar o pescoço e a provocarem-me o vómito em simultâneo. – Respondi num sussurro de pânico. Estava prestes a desfalecer quando Lewis perscrutou o jardim através da janela, ouvi um rosnar muito profundo, como se fosse o anúncio de uma tempestade qualquer, e, sem saber o porquê exacto de ter chegado a esta conclusão, senti a mulher a conceder-me um desaperto ligeiro do pescoço.

Assim que me senti assolada pelo alívio, senti-me como se estivessem a apoderar-se da minha alma. Era algo tão maligno que era capaz de me por doida num segundo. Essa força fez-me falar, numa voz tão ronronante como maligna, como se estivesse a fazer-me a alguém para no momento seguinte a matar a sangue-frio da forma mais arrepiante possível.

- Isto é só o começo, Desdrov. E, assim como conduzi esta jovem ao limiar da vida dela, posso fazê-la matar-te. Aliás, é de louvar o pequeno brinquedo que arranjaste, é forte.

Lewis olhou para mim, surpreendido. Parou por completo durante um segundo, como se eu estivesse a insultá-lo de forma que nem ele sequer seria capaz de fazer. A minha dupla voz continuou com o seu discurso.

- Isto só acabará quando um de nós morrer. Aliás, quando tu morreres. Neste mundo só há lugar para um imperador, e esse será o meu lugar quando arderes na fogueira.

A coisa má abandona-me a alma, levando-me a sentir nos limites. O ar faltou-me completamente e comecei a lutar contra o que parecia ser a minha própria morte, mesmo depois de me sentir livre da pressão que me apertava o pescoço. A mulher deu-me mais um sorriso diabólico e foi-se embora no momento em que eu ia cair. Sabia que com a queda iria bater com a cabeça na ilha da cozinha, mas ao invés disso, senti algo a puxar-me para cima. Lewis tinha conseguido agarrar-me antes de cair. Virou-me cabeça para o lado e vomitei todo o meu jantar na cozinha. Antes de fechar os olhos, olhei de novo para a janela e vi a lua, cheia e bela, a banhar-me com o seu luar. As luzes estavam apagadas, como se tivesse havido um apagão geral, e por isso mesmo, só conseguia ver a silhueta de Lewis sobre mim.

- Estás bem? – Perguntou, num sussurro tranquilizador e urgente.

Devolvi-lhe uma espécie de sorriso, o melhor que o meu estado estranhamente extenuado e frágil permitiu, e tentei levantar a mão e fazer sinal que estava tudo bem, mas os meus olhos fecharam-se logo de seguida contra a minha vontade, seguido da queda do meu braço sobre o meu peito e da perda do resto dos sentidos.

Abri os olhos mais tarde. Estava na minha cama e ainda era de noite, mas mesmo assim, ainda estava sobressaltada. Comecei a olhar para todas as direcções, desnorteada e freneticamente. Estava eléctrica por completo, ainda pensava que estavam a apertar-me o pescoço. Rebolei mais uma vez na cama de modo a ficar para a janela da varanda e, sem me aperceber, tinha chegado aos limites do colchão. Quando me apercebi disso, uma mão agarra-me e puxa-me de novo para a cama, até me encostar a algo frio, mas que ao mesmo tempo sabia-me a quente. Pôs um dos braços sobre a minha cintura e respirou fundo, confortadoramente. Era Lewis que me tinha levado para a cama e estava agora deitado ao meu lado, mas sobre a roupa da cama. Este detalhe acalmou-me e excluiu prontamente a possibilidade de ter sido abusada ou algo do género.

- Estás bem? – Perguntou-me docemente, tão coloquialmente e desvalorizador, dadas a circunstâncias, como se estivesse a fazer a mesma pergunta depois da recuperação de uma constipação. Se fosse um pedaço de chocolate ou de caramelo dentro de uma panela sobre o fogão, teria certamente derretido antes de acenderem o fogão. Reprimi qualquer emoção que ameaçava reflectir-se na minha cara.

- Estou melhor. Pelo menos, já respiro. O que raio foi aquilo? – Disse-lhe enquanto me virava de barriga para cima. Estava tão próxima dele que não conseguia fazer mais nada a não ser concentrar-me na sua respiração e nos seus lábios. A janela sobre as nossas cabeças deixava o luar dar um ar da sua graça no quarto, dando-me mais visibilidade à sua cara. Fiz os possíveis para manter o meu rosto inexpressivo, a fim de lhe ocultar a finalidade do meu olhar.

- É melhor tu não saberes, por agora. – Disse-me de uma forma tão doce que me fez calar. Suspirei e fiquei a olhar para ele, para aqueles olhos fantásticos e negros como a noite. Apoiou-se num braço, ficando acima de mim. Não conseguia olhar para outra coisa que não os seus olhos e boca. Grande parte de mim teimava em levantar a mão e passa-la pela face pálida e fria dele, parando na nuca e puxando-o para mim, mas era a parte mais pequena que me fazia manter parada, a parte racional e moral.

- Que horas são? – Perguntei, não por curiosidade, mas para me distrair do meu devaneio.

- Passa pouco das quatro da manhã. – Respondeu.

- Quatro?! E tu ainda estás de pé? – Perguntei surpreendida.

- Achas que te ia deixar aqui depois do que se passou? Tu vomitaste, estavas fraca! Além do mais, tu estavas muito agitada o tempo todo em que estiveste a dormir.

- Como?

- Tu não paravas de rebolar e falavas coisas sem sentido. Só percebia o meu nome. – Explicou. Como? Eu tive um ataque de sonambulismo?

- Eu falo enquanto durmo? – Disse, surpreendida.

- Sim. Já da outra vez que nos vimos, tu também falaste muito. Mas dessa vez, tu falaste muito em sangue, acho que até perguntaste o que a pessoa tinha andado a fazer contigo para estar com a boca em sangue.

- Estás a gozar. – Disse descrente, mas não num tom azedo, foi num tom de surpresa.

- Não, não estou. Mas passados poucos segundos, tu disseste algo parecido com: “ah, ok, ele mordeu-me”. Achei bastante engraçada a forma como tu disseste isso.

- Meu, que moca do espaço. Eu sou sonâmbula. – disse, mais para mim do que para ele, olhando para o poste da cama à minha direita, aos pés desta. Para me chamar à atenção, Lewis passou um dedo pela minha cara. A resposta ao toque foi imediata. Virei a cara para ele…

… E minha Nossa Senhora das Pessoas Perdidas no mundo. Aquele olhar deu-me cabo de mim. Era absolutamente normal e informal, mas eu vi algo mais naquele par de olhos. Um desejo ou algo parecido, não o soube qualificar bem devido ao sono que começou lentamente a invadir-me e à confusão em que estava a minha cabeça. Ficámos uns segundos a olhar um para o outro, fixamente e em silêncio, enquanto eu, inexplicavelmente, relembrava a sensação que tinha quando ele voltou a entrar na casa, a vontade de estar ainda mais próxima dele, sentir que, em suma, eu sou alguém que desperta do desejo de outra pessoa.

Sem qualquer outro sentido senão o de delicada… compaixão? Tentativa de conforto? Passou de novo a mão pela minha cara, parando-a no meu queixo e agarrando a minha cara a partir daí. Devagar, baixou-se um pouco e disse num sussurro tão baixo que parecia que fazia parte da noite, não perdendo o meu olhar nem um pouco.

- Isto nunca voltará a acontecer-te. A seu tempo, perceberás tudo, mas não agora. Eu prometo-te isso, Cassie.

- Irás estar lá para me explicar? – Perguntei também num murmúrio. Afinal, não deixava de ter medo de ter de me meter em mais aventuras sozinha. Precisava de me sentir perto de alguém que pudesse ser um porto seguro.

- Sim. Irei. – Foi a resposta, num tom tranquilo, calmo, como se estivesse a revelar alguma fraqueza inadvertidamente, mas firme. Baixou-se devagar e beijou-me a testa que, com os movimentos que fiz, ficou com uma madeixa de cabelo por cima desta e me deu uma ideia, para fazer no dia seguinte.

- Trata de dormir. Até amanhã. Bons sonhos. – Disse no mesmo sussurro. Baixou-se de novo e pousou outro beijo, desta vez, na bochecha. Fechei os olhos e, até ter adormecido, não senti Lewis a sequer sair da cama.

Ouvi um som idêntico a passos pesados quando voltei a acordar. O Sol de finais de Junho invadia estranhamente o meu quarto. Mantive-me deitada enquanto prestava atenção aos passos. Como se fosse algo tão natural como uma rotina bem implantada, sorri um segundo antes de Lewis se deter do outro lado da porta para a abrir. A manhã mudou o seu aspecto, tornando-se bela e bem-vinda à divisão quando Lewis dirigiu-me um sorriso meio contido quando me viu sentar na cama

- Vejo que vim em boa hora. – Disse com uma boa disposição que não estava habituada a ver nos homens, excepto quando estavam a fazer algo de cruel. Não consegui evitar que um assombramento passasse pela minha cara, reflectindo-se no dele enquanto se aproximava da cama.

- Passa-se algo? - Perguntou preocupado. Reparei que trazia nas mãos uma pequena bandeja coberta com uma base para pratos vermelha que onde pousava uma caneca de leite e pão, acompanhado de dois frascos pequenos com doce de morango e pêssego que tinha comprado nessa semana. À esquerda da grande caneca do Sponge Bob, estava um pequeno açucareiro laranja, de onde se mostravam os vértices de alguns cubos de açúcar.

Pousou a bandeja ao meu lado e ficou de pé perto da cama, pronto a ir buscar algo se lhe pedisse algo.

- Não foi nada de especial. Ao menos dormiste alguma coisa? – Disse-lhe enquanto pousava o meu pequeno-almoço no meu colo e comecei a cortar o pão.

- Sim, dormi bem. E tu?

- Também, obrigada. – Voltei o olhar para o doce de morango para evitar que lhe perguntasse acerca do meu ataque de sonambulismo. – Não te queres sentar? – Perguntei quando terminei.

Ele sentou-se timidamente na borda da cama, virado para mim. Dei uma trinca no pão para reprimir os pensamentos apaixonados que me passaram na mente quando o observei a sentar-se.

- Deve ter sido uma noite dos diabos para ti, tratar de uma adolescente como eu. – Disse, mais para mim.

- Porque dizes isso? – Interrogou suavemente.

- Passei mal como tu próprio viste na cozinha e ainda por cima tiveste de me carregar para aqui e aturar o meu suposto sonambulismo. Podias ter-me deixado no sofá e tapado com uma manta, passaria bem a noite. – Respondi secamente.

- Tu és leve para mim, não tive dificuldades em trazer-te para aqui e além do mais, enquanto tu estiveste desmaiada depois de vomitares disseste-me para te trazer para aqui. Não te lembras?

- Não. – Respondi surpresa, olhando-o com olhos esbugalhados.

- E também pediste-me para não te deixar sozinha quando adormeceste, mas eu não pude ficar.

Assim que me disse isto, senti o sangue a fugir-me da cara, mas decerto devo ter ficado de todas as cores, qual arco-íris. Tinha paralisado e percebi que ele tinha entendido tão bem a minha surpresa como se tivesse verbalizado. Também entendi que aqueles olhos tinham a perspicácia de um assassino, eram fatais, captavam todos os sinais como se estivesse a fazer uma actualização constante e estavam prontos para qualquer situação. Estranhamente, não me retrai perante aquela mortalidade que se escondia por detrás de um jovem absolutamente simpático e atencioso.

- Tiveste a trabalhar? – Indaguei.

- Correcto. Tive uma ideia para a resolução de um problema no caso que estou a analisar.

- Fala-me um pouco mais do. que fazes. Que tipo de casos… investigas? – Perguntei, inclinando-me para ele.

- Sou muito requisitado por parte de famílias da alta sociedade, na sua maioria, para aqueles casos de infidelidade. Mas o que mais gosto de fazer é investigar assassínios. De momento estou num caso muito peculiar do assassínio de uma família com uma ligação muito ténue com a minha.

- Gostas de acção. – Espicacei num tom de brincadeira. Era esta a minha forma de me esquivar de assuntos incómodos ou privados.

- Pode-se dizer que sim. Pode ser que um dia te ensine algumas técnicas. Como vais trabalhar num bar, podes ver-te em maus lençóis com a clientela que frequenta o café nesta altura do ano.

Mau. Aquilo não foi nada na brincadeira apesar de ele ter dito aquilo com boa disposição.

- Como assim?

- Tu sabes como é o teu horário de trabalho?

- Em princípio, é mais ou menos na hora de jantar.

- É a essa hora que as pessoas se deixam levar pelos vícios. – Foi a sua única explicação. Dois segundos depois entendi e concordei com a sua explicação, os meus pais eram mesmo como ele disse.

- Tens razão. – Disse.

Assim que disse isto, senti algo diferente no ar. Estava uma mudança qualquer a alterar-se e estava prestes a cair sobre mim. Era como se uma brisa estivesse a vaguear por aí à minha procura para me envolver. Quando me atingiu, senti como se tivesse um sexto ou sétimo sentido. Olhei para Lewis e vi algo muito estranho, como se pudesse ver a sua alma. Conseguia ver o seu coração, mas estava parado. Senti, de igual modo, um estado de espírito: paz, tranquilidade, atracção, sede e algo que me pareceu ser um sentimento de amor não admitido por ele. Estes últimos dois eram suprimidos e escorraçados a um pequeno canto de si.

Voltei a mim de novo quando percebi que voltava a ouvir. Este flash tinha-me deixado surda. Foi como se estivesse a descobrir algo em mim. Ele sorriu e eu saí da cama para prosseguir a minha vida, ignorando o sucedido.

Passei o dia todo na cidade nas compras até às cinco horas, quando fui no carocha azul eléctrico, que passei a adorar, para o Old Burger para o meu local de trabalho. Situava-se no ponto norte do parque de Old Springs, uma rua atrás de uns escritórios, perto das escolas da cidade. O ar estava a refrescar e previa-se uma descida da temperatura nessa noite. O interior era muito luminoso e salpicado por mesas que se enfilavam junto às janelas, entre dois assentos de cor roxa, e que se isolavam um pouco mais no meio desse espaço. O ambiente ali já era mais agradável, mas não muito contrastante.

Assim que entro, deparo-me com Bryan Michaels, o proprietário. Estava a limpar copos quando reparou em mim, largando-o de imediato para vir ao meu encontro. Colocou nos lábios finos um sorriso amigável mas firme.

- Boa tarde, Bryan. – Cumprimentei quando apertou a minha mão. Apesar de ser patrão, ele preferia ser tratado pelo primeiro nome, assim como tratava todos os empregados da mesma forma.

- Olá Cassandra, chegaste em cima da hora. – Olhou discretamente para o relógio pendurado na parede atrás de mim, à minha esquerda. Era um grande relógio de uma marca de cerveja em vermelho e amarelo. – Aliás, vieste cedo. Gostei desse sentido de pontualidade. Estás pronta para o trabalho?

- Estou, pois. – Disse animada.

- Óptimo. Bem, hoje encarregas-te somente de preparar as bebidas. Eu ajudo-te para poderes entrar no ritmo, mas é só hoje. Também tenho uma farda provisória para ti. Quando terminares, tratamos desse pormenor.

Saiu da cozinha uma mulher com a farda do bar: t-shirt branca com um calção mini-saia roxo. Os cabelos dela eram mais acastanhados que os meus com madeixas vermelhas e tinha jeitos que brincavam até ao fim das costelas. A pele era bronzeada, cor de galão, comparativamente comigo. Tinha uns olhos cor de mel muito orientais e os lábios rosados e ligeiramente grossos findavam nos cantos com uma curvatura como se estivesse sempre a sorrir. Olhou para nós, mais especialmente para Bryan, hesitante.

- Euhm, Bryan, preciso de falar contigo. – Disse ela numa voz aguda, delicada.

- Cassandra, esta é a Louise Fontaine. Louise, esta é a nossa nova colega de trabalho Cassandra Gohstly. – Disse Bryan num tom contido. Louise olhou para mim de alto a baixo o mais rápido e discreto possível, com um sorriso que inicialmente era forçado e pensativo.

- Olá, Cassandra. Bem-vinda. Desculpa-me a pergunta, mas tu és da família da Janette Gohstly? – Disse com um sorriso sincero. Pareceu-me que ela me aceitou verdadeiramente, mas mantive uma reserva.

- Sim, sou neta dela.

- Bem me parecia. Eu conhecia-a. Era uma jóia de pessoa. É bom conhecer alguém da família dela.

Bryan foi ao outro lado do balcão enquanto falávamos.

- Espera, agora estou a lembrar-me do teu apelido. – Disse.

- Eu vivo ao fundo da rua da casa dela. Sou filha do casal canadiano que se mudou para lá há vinte anos. – Informou.

- Sim, já me lembro de ti! Os teus pais falavam muito com a minha avó.

- Exacto! – Disse ela rejubilante.

- Euhm, Cassandra, aqui tens a farda. Podes usar a casa de banho. – Disse Bryan dando-me um saco.

- OK. Obrigada.

- Até já, Cassie. – Disse Louise.

Sorri-lhe e fui-me trocar. A farda encaixava, de facto, no meu corpo e dava ainda mais destaque à minha palidez. Quando saí, estavam ainda Louise e Bryan a falar. Rapidamente o diálogo foi cessado e Bryan, com Louise por perto, explicaram como as coisas eram feitas.

A hora de jantar chegou e com ela, casais e grupos de pessoas para jantarem. Foi tudo até relativamente fácil, mas também tinha sempre ali a ajuda de Bryan com as bebidas. Quando apanhei o jeito, acabei por ir servir e foi algo novo e muito bom para mim andar de um lado para o outro.

Numa determinada altura, quando estava a passar a Louise a louça de uma mesa, senti de novo aquela surdez, permitindo-me ver Louise de uma forma peculiar: o nervosismo atravessava a concentração. Não parava de pensar em alguém, numa situação não muito boa em que se encontrava. Um homem e, agora, uma mulher. Porém, ela tinha decidido ficar parada face a essa situação e esperar por mais alguns avanços. Tentei manter essa capacidade, com efeito. O seu coração batia normalmente e, quando tocou-me acidentalmente na mão, este começou a bater num ritmo mais acelerado. Desconcertada, olhei para ela, agora com uma visão normal, enquanto ela olhou para mim de esguelha como se nada fosse.

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