terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Capítulo III - A Suspeita

Como ainda me falta um mês para ter dezoito anos, posso trabalhar legalmente durante poucas horas por dia, por isso terminei o meu trabalho perto da meia-noite – outra ilegalidade que estava a cometer, já que essas horas deviam de ser cumpridas antes das oito da noite. Louise aproveitou o facto de vivermos na mesma rua para vir comigo, mas pouco disse, a preocupação que tinha captado antes no bar ainda continuava patente nela. Aproveitei esses segundos que nos separavam das nossas casas para analisar melhor o que se tinha passado antes. Sempre me tinham acontecido coisas estranhas de tempos a tempos; podia ouvir vozes estranhas como se fossem pensamentos quando tinha cinco anos, tinha visões de coisas que mais tarde aconteceriam quando tinha onze, e sempre tive uma força um pouco fora do normal e os sentidos bem apurados.

Parei o carro em frente à minha casa. Louise ficou a olhar para a minha casa, concedendo-me um tempo para me recompor da minha divagação, porém sem saber disso.

- Vives sozinha? – Perguntou.

- Não, vivo com o meu padrinho. Ele está cá de passagem e eu estou a passar férias aí.

- Não te custa estar aqui, na casa que foi da tua avó?

- Não. – Mal sabia ela o Paraíso que esta casa significava para mim.

Ela saiu do carro e olhou para o seu reflexo no vidro do carro, ajeitando o seu longo cabelo. Eu saí calmamente pouco depois dela.

- Prometes-me uma coisa? Quer dizer, eu sei que nós não nos conhecemos muito bem, mas queria pedir-te uma coisa.

Encostei-me ao carro ao seu lado, virada para ela enquanto brincava com as chaves.

- Diz-me o que queres e logo te digo se o faço.

- Tem cuidado. Têm andado a acontecer cenas esquisitas.

- Como assim?

- Desde que a senhora Janette morreu, os vizinhos têm visto cenas estranhas como pessoas sempre a entrar e a sair, mas sem roubarem nada e barulhos muito estranhos. Por vezes, encontram-se animais mortos por aí.

- Eu e o meu padrinho não demos por falta de nada e parece-me que, pelo que me disseste, também não têm havido problemas nas outras casas do bairro. Já agora, como sabem se roubaram ou não o que quer que seja da casa da minha avó?

- Não sei, apenas te estou a contar o que a senhora Rice me tem contado. Mas sim, tens razão. – Disse ela, mordendo o polegar. – Mas enfim, Cassandra, sabes como é o pessoal do bairro: há muito que este foi um bairro todo para a frente. Agora, só nós é que somos os habitantes mais novos… espera, ainda há o William Rice, mas é rara a vez em que ele aparece por cá, dizem que trabalha muito fora. Bem, concluindo, este bairro é assim, intriguista.

Seguiu-se um momento de silêncio, que aproveitei para vasculhar a rua. Era um bairro pequeno, mas muito acolhedor. E sim, Louise estava certa relativamente aos habitantes desta rua a norte de Old Springs: eram quase todos pessoas da terceira idade, orgulhosas por viverem num sítio tão tradicional e antigo como este.

O telemóvel de Louise vibrou e, ao ver o que se passava, suspirou e desencostou-se do meu carocha.

- Bem, tenho de ir andando. Já tenho o namorado à porta. – Disse neutramente.

- Está bem. Boa noite.

Até amanhã, Cassie. – Tornou com um sorriso que lhe fazia covinhas na sua pele pura cor de galão, tornando a sua cara ainda mais bela e inocente.

À medida que caminhava pelo jardim até casa, vi apenas as luzes do rés-do-chão acesas, pelo que me lembrei que Lewis já se tinha deitado. Entrei em casa e prestei atenção aos sons. Ele estava a tomar banho no piso de cima. Enquanto me dirigia para o meu quarto, deparei-me com algo estranho na sala, uma televisão? Uma televisão gigantesca desligada estava no centro da estante da sala, acima de um leitor de DVD com conjunto de home cinema completo e espalhado pela estante. À esquerda, do lado da parede da porta, estavam os meus livros todos em fila e ordenados alfabeticamente, enchendo duas prateleiras e continuado por um outro monte de livros, provavelmente de Lewis. Fui espreitar os antigos livros, de capa dura, e eram clássicos da literatura inglesa e americana. O que me chamou à atenção na sua colecção foram apenas os títulos de Edgar Allan Poe e Jane Austen. Desviei a minha atenção para a direita, do lado da grande janela, e encontrei filmes para todos os gostos, uma colecção muito variada.

- Olá. – Disse Lewis atrás de mim. Dei um salto. Virei-me para ele e, graças ao Pai do Céu, não estava em tronco nu como esperava. Para o bem da minha saúde mental, já debilitada com a sua presença e proximidade.

- De onde veio isto tudo? – Perguntei-lhe apontando para a prateleira.

- Da minha antiga casa, no Minesota. Mas se quiseres, posso tirar tudo, afinal a casa é tua.

- Não, não, não, não. Deixa estar que esta casa precisa mesmo disto. Tens uma excelente colecção de filmes.

- Obrigado. – Respondeu num sorriso. – Como foi o teu primeiro dia de trabalho?

- Bastante bom. Parece-me que me vou dar bem com aquilo.

- Ainda bem. Queres que te aqueça aquela pizza que fizeste ontem enquanto vais tomar banho?

- Ora aí está uma excelente ideia! – Retorqui sorrindo para as costas dele, pois ele já estava virado para a cozinha para fazer o que me tinha sugerido.

Corri então escadas acima e fui tomar um banho que me soube maravilhas. Lembrei-me de novo daquela sensação que me deu naquele dia. Era algo arrepiante, mas permitia-me entrar na mente das pessoas de certa forma. Não me assustou por completo porque já tinha tido outras experiências e como tal isto poderia ser mais uma das anormalidades de uma anormal. Pus o chuveiro no suporte e apontei-o para a cabeça e tentei relaxar e tirar tudo da minha cabeça. Era sempre assim que fazia quando tinha “coisas esquisitas”, logo, se esta era mais uma dessas coisas, não deverá ser difícil voltar a ver o que vi. Concentrei-me apenas no meu objectivo, captar de novo algo e consegui sentir a surdez. Captei a mente de Lewis, que reconheci de imediato pelo estranho e parado coração, e vi que algo de muito estranho nele estava a passar-se: pensava em animais selvagens e no parque de Old Springs, bem como a pequena floresta perto da casa dos meus pais. Pensava em ir lá depois de eu ir para a cama.

Assustei-me quando lhe veio a recordação do cheiro de sangue e voltei a ouvir a água a cair sobre a minha cabeça e todos os outros barulhinhos. Porque estava a pensar naquela zona? Não tinha referido os meus pais, pelo que deduzi que não os conhecia, mas mesmo assim, aquilo incomodou-me. Não que não me quisesse ver livre deles, até porque ainda corro perigo de me acontecer alguma desgraça enquanto eles estiverem vivos e talvez à procura do meu paradeiro, mas custava-me acordar e ouvir a notícia da morte deles. Afinal ainda foram os responsáveis pela minha existência.

Fui secar-me no meu quarto ao som de Simple Plan, num volume baixo e suave que me fez entrar na batida irresistível da bateria e cantarolar as letras enquanto me preparava para ir jantar. Antes de sair do quarto, enquanto me penteava, lembrei-me da ideia que me tinha ocorrido na noite anterior. Agora que tinha recomeçado a minha vida, podia fazer o que quisesse. Estava a mudar, logo, porque não posso mudar o meu penteado? Peguei de imediato na tesoura, penteei o cabelo para a frente, formando um “V” a partir do meio da cabeça e cortei essa mesma madeixa num corte direito e horizontal sobre a zona das sobrancelhas. Era o mais fácil e talvez o mais infantil, mas era algo que eu sempre quis fazer, cortar o meu próprio cabelo. Além do mais, tinha de estar perto de um mês dada como desaparecida, por isso tinha de me esconder, mas como tinha um emprego, esta poderia ser uma pequena solução para me ajudar a esconder-me.

Quando desci, o cheiro da pizza era intenso. Lewis tinha posto mesa somente para mim e estava sentado de novo à frente do local destinado para mim. Sentei-me e comi em silêncio. Tinha vestido apenas uma camisola comprida, que me chegava a metade das coxas e as mangas aos cotovelos, e prendido o cabelo, ainda molhado, com um grande bico-de-pato da cor do meu cabelo com flores de veludo da mesma cor coladas na sua extensão. Ele não tirava os olhos da minha cicatriz no braço, aquela que o tinha intrigado na noite anterior, antes da “cena esquisita” que me atacou.

- Não me queres contar o que se passou nesse braço? – Interrogou.

- Não estou muito interessada. – Tornei.

- Porque não?

- Porque queres saber?

Ele hesitou, sem resposta. Quando voltou a falar, a voz era contida e o discurso baralhado.

- Porque… bem, preocupo-me.

Decorreu um bom bocado. Ele era a única pessoa em quem podia confiar. Ele era a única pessoa que parecia disposta em aceitar-me na sua vida com a qualidade de anormalóide que me persegue e a proteger-me, apesar de ainda saber tratar de mim sozinha. Ele merecia pelo menos isto. Contra a minha vontade, mas merecia.

- Como te tinha dito – comecei num tom baixo enquanto cortava a última fatia aos bocados. –, os meus pais nunca foram bons pais. Eles bebem muito desde os meus nove anos. Nessa altura, aprendi uma técnica para não me baterem: se estivesse no meu quarto a dormir, estava safa. Quando tinha dez anos, eles entraram no meu quarto, viram-me deitada, mas ouvi o remexer de algo. No dia a seguir, a vizinha apareceu em casa e disse que alguém tinha roubado uma coisa qualquer que tinha muito valor para ela e que o ladrão tinha ido parar à minha casa. Depois de uma discussão, a minha mãe desafiou-a e disse-lhe para ir ver pela casa. A mulher era perspicaz e foi logo aos quartos. Começou justamente pelo meu e descobriu o que procurava. Nessa noite, levei uma sova das grandes e acabei por partir o braço quando tentava fugir para aqui, para pedir ajuda à minha avó. Tinha caído das escadas da casa e fiz uma fractura exposta. Graças os Céus, cheguei aqui e a minha avó levou-me logo ao hospital para ser operada. Foi a última vez que eles me bateram porque tiveram a Segurança Social de olho neles.

Esteve calado o tempo todo. Depois de ter falado, comi os bocados que tinha cortado um por um, para evitar continuar a falar e mantive-me sempre de cabeça para baixo, com a cara coberta pela minha nova franja, para não o encarar, por vergonha. Fiz tempo ainda sentada, brincando com a comida e bebendo quase uma garrafa de coca-cola, coisa que me iria fazer muito mal ao meu estômago. Quando terminei, tinha os olhos cheios de lágrimas, mas nenhuma tinha sido derramada; tinha-me habituado a não chorar em frente das pessoas. Estava a lavar a louça quando ele me abraça por trás, pelos ombros, e encosta a cabeça ao meu ouvido direito.

- Lamento por isso. Não mereces os pais que tiveste. – Sussurrou.

- Eu sei. A minha avó foi a única família que tive. – Retornei, com azedume e muita ironia.

- Deixa isso. – Disse fechando a torneira e fazendo-me pousar a louça com as suas pálidas e macias mãos. Virou-me e eu abracei-o, pondo-me em bicos de pés para colocar a cabeça no seu ombro forte e frio enquanto ele passava a mão pelo meu cabelo.

- Adoro o teu cabelo. Essa franja fica-te engraçada. – Disse para me acalmar.

- Fi-la agora quando, saí do banho. – Afastei a cara do seu ombro e olhei-o nos olhos. Lewis passou uma das mãos pela franja, causando-me uma falta de ar repentina e maravilhosamente dolorosa.

- Pareces uma rapariga mais nova. E sabes que mais? – Disse enquanto a mão passava pela minha cara. Parou quando a cara ficou ainda mais perto da minha e os dedos pararam num dos cantos dos meus lábios, olhando para eles enquanto parecia estar a decidir algo. Quando decidiu, olhou-me nos olhos e senti como se ele escrutinasse a minha alma. - Eu… gosto muito. – E aproximou os seus lábios dos meus. Apertava a minha cintura contra a dele ternamente. Tanto frio arrepiou-me os pelos dos braços. Fechei os olhos e agarrei a camisola dele para não o deixar ir. Tanta expectativa era tão boa que até feria descaradamente. Ele estava tão perto de me beijar e estava tão disposto a isso que me partia o coração delicadamente, com suavidade e carinho. Mais uma aproximação, mais uma racha no meu coração. A expectativa foi tanta que eu não aguentei.

Cheguei-me ainda mais a ele até os nossos lábios se tocarem. Hesitei no último instante assim que senti a suavidade dos seus lábios, como se tivesse apanhado um choque. Senti a sua boca a formar um sorriso.

- Cada vez mais fazes-me gostar ainda mais de ti. – E sem hesitar, sem me permitir reagir, sem mais nada, beijou-me lenta e ponderadamente.

Arrepiei-me até não dar para mais. Ele acelerou o ritmo e enredou uma das mãos no meu cabelo, na nuca. Eu fui rastejando as minhas mãos até as entrelaçar no seu pescoço. Gemeu quando passei-as pelo seu peito e acelerou ainda mais o ritmo, sentando-me na bancada, passando do saborear ao devorar no impulso que fiz para me sentar. Não sentia mais nada em mim a não ser o seu toque já debaixo da camisola, o seu beijo e a respiração de ambos, pesada e ofegante. Não conseguia pensar e muito menos conseguia respirar, estava a ser forte demais para eu aguentar tanta coisa num só beijo. Sem saber porquê, veio a associação de Lewis à morte… Sim, ele podia-me matar ali mesmo que não me importaria absolutamente nada. Nunca fora ninguém de especial para quem quer que fosse,

Cedo demais, a minha consciência começou a sair lentamente do estado de entorpecida histeria. Eu nunca havia sentido nada como isto, por nenhum rapaz ou homem. E também nunca havia aceitado um “convite” como este, por medo de represálias, para não dar aos outros motivos para se rirem de mim. Quem me garantia que Lewis não iria também me usar para proveito próprio? Como se fosse uma dança num baile formal, como os que via nos filmes quando era pequena, comecei a abrandar até parar o beijo. Lewis beijou-me a testa enquanto penteava-me o cabelo com as mãos. Fechei os olhos enquanto recebia de bom-grado o arrependimento, que me assolou de forma brutal e até viril. Pousou o queixo na minha cabeça enquanto esperava poder acalmar a respiração.

- Bolas, Cassie… Tens uma força fenomenal. – Declarou ainda com dificuldade na regulação da respiração.

- Não tenho nada. Mais normal que eu só o facto que a Terra gira em volta do Sol. – Tornei enquanto aspirava o seu aroma puro e simples. Parecia que cheirava a terra, não consegui apurar por completo.

Não podia continuar mole e influenciável. Tinha de me impor e mostrar que não sou oferecida e delinquente, pois é isso que acabei de ser: uma grande oferecida. Levantei a cabeça, fintei os seus olhos escuros e levantei o dedo indicador entre nós.

- Que isto não volte a acontecer. Não sou nenhuma droga injectável para te fazer esquecer o mundo. Posso ser uma fugitiva mas não sou nenhuma vadia, entendido? – Disse com firmeza. Em resposta, ele afastou-se com nítida relutância e fez-me uma vénia, com uma graciosidade que nunca havia nem sequer imaginado. Quando se ergueu de novo, mostrou-me uma máscara de respeito que disfarçava mal o prazer que o beijo tinha sido para ele. Levantei-me irritada perante aquela expressão prazenteira e comecei a ir para o meu quarto.

Sem perceber como ou porquê, ele alcançou-me mesmo antes de pisar o primeiro degrau das escadas. A sua expressão já era de firmeza e rigidez.

- Depois do que se passou ontem, não estou muito seguro da hipótese de ficares bem sozinha. – Estendeu-me uma arma pequena, uma das chamadas “armas para senhoras” preta. Olhei para ele confusa, irritada e de boca aberta. – Já está carregada e destrancada. Não a tenhas longe de ti. E não temas em usá-la se te sentires em perigo ou ouvires algo de estranho.

- Porque raio estás a dar-me isto? Sou assim tão nova que pareço não ter pernas para fugir? Eu conheço todos os esconderijos desta casa e já saltei várias vezes do piso de cima para fugir dos meus pais, quando tentavam levar-me para casa.

- Não duvido das tuas capacidades de fuga, mas fica com a arma. Eu vou ter de sair e sou capaz de me demorar. – Levantou-me a mão e pôs a arma nela antes que pudesse responder. Olhou para mim e ofereceu-me um sorriso deslumbrante que me fez baixar as defesas.

– Obrigado. Até logo. – Pegou-me lentamente no queixo e aproximou as nossas caras até me beijar de novo nos lábios. Desta vez foi mais cavaleiro e não se aproveitou, foi apenas um leve roçar de lábios, tão suave que me fez fechar os olhos para poder sentir bem a suavidade. Largou-me a cara e quando abri os olhos, a porta já estava a fechar-se, deixando-me sozinha. De novo.

Ao subir as escadas, senti um cheiro estranho, vindo do quarto de Lewis. A porta estava aberta e as luzes apagadas. Os cortinados dançavam ao sabor da brisa, pelo que a janela estava aberta. O cheiro era intenso e era-me ao mesmo tempo estranho e familiar. Entrei vagarosamente no quarto e a palavra “sangue” veio-me à mente quando acendi a luz.

Fiquei a olhar atentamente o quarto pouco personalizado e simples: a cama estava feita com primor e com as almofadas roxas postas cuidadosamente na cabeceira; três caixas grandes estavam sobrepostas perto da pequena secretária e, no meio desta, encontrava-se um portátil topo de gama com um autocolante grande no meio, um emblema rodeado de efeitos daqueles que se vêm nos portões das mansões ricas. Exactamente ao lado estavam vários frascos de um líquido vermelho estranho e um saco preto do lixo fechado num nó bem dado e apertado. O cheiro vinha de um dos frascos que estava mal fechado e tinha vertido um pouco do líquido. Passei com um dedo rasto que escorria do frasco e ao saborear percebi que era mesmo sangue. Arregalei os olhos, assustada, e apalpei o saco preto. Pareciam ser bocados de algum animal peludo e grande. Afastei-me atormentada sem chegar à cabeça deste e desviei o olhar da secretária onde, em pequena, desenhava e fazia os trabalhos da escola. Dediquei a minha atenção às três caixas. A última de cima estava aberta e chamou-me à atenção o cheiro a coisas arrumadas, a mofo, que me vinha dali. Abri-a e o que estava nesta caixa eram livros antigos com títulos estranhos com nomes que associamos imediatamente à necromancia e ao estudo de seres sobrenaturais.

Nem toquei nos livros, para que Lewis não soubesse de imediato que eu estive lá, por isso fechei a caixa tal como estava e reparei que num dos cantos da secretária encontrei uma maleta cinzenta destrancada, tão grande como o portátil. Abri-a e deparei-me com um microscópio branco sujo e respectivo material para análise de substâncias… Como o sangue que estava enfrascado? Como o pêlo do animal no saco ou a sua carne?

Comecei a sentir náuseas do carregado cheiro a sangue, estava perto de vomitar, como tal, fechei a mala e fui para o meu quarto, onde me deitei pesadamente na cama. Está certo que, segundo ele me havia dito, era investigador, mas será que é preciso tudo aquilo para poder fazer a sua investigação? Não era suposto haver, em vez de material de laboratório, coisas como fotografias, recortes de jornais, mais material fotográfico? Livros mais sobre talvez psicologia e coisas do género?

Caí rapidamente no sono e entrei no sonho tão rapidamente como se estivesse a pestanejar. Estava com a minha avó no balouço do jardim e tinha um vestido cor-de-rosa e preto, como um que tinha usado um dia qualquer para uma casamento ou algo do género pouco tempo antes de ela morrer. Esperava por algo que nem eu sabia ao certo e não ouvia mais nada a não ser o vento a brincar com os ramos das árvores e as flores, a cantar com as folhas da árvore, apesar de a minha audição ser sempre nula em todos os meus sonhos, e a lançar-me o cabelo para a frente da cara. O Sol já se escondia atrás do horizonte quando alguém aparece na varanda das traseiras. Parei de respirar ao ver Lewis de fato preto e gravata vermelha, com o cabelo posto estrategicamente num despenteado fantástico. Sorriu ao ver-me e num ápice percorreu o jardim até à outra extremidade onde se ajoelhou à minha frente.

- Está quase na hora, Cassie. – Disse num tom suave passando a sua mão pela minha cara parando na veia do meu pescoço.

- Ainda sentes vontade? – Interroguei insegura. Ele deu uma suave e abafada gargalhada.

- Vai ser a última vez, mas nunca uma última vez me deixou assim.

- Assim, como? – Perguntei pendendo a cabeça para o lado.

- Normalmente, arranjamos alguém que nos fornece o que precisamos durante algum tempo, mas devido ao nosso veneno, acabamos por criar alguns problemas de saúde, na maioria psicológicos; as pessoas ficam loucas ou então, quando a mente se mantém sã, acabam por morrer de leucemia. Eu sempre quis que essas pessoas vivessem, mas nós acabamos por ter um problema: acabamos por ficar demasiado apegados a elas, quando se está na minha condição. É quase como se nos viciássemos numa droga.

- Está a custar-te ser esta a última vez? – Interrompi. Ele elevou-se um pouco e, pegando nas cordas grossas do balouço, aproximou-se e beijou-me a veia que pulsava freneticamente no meu pescoço, causando-me arrepios.

- Não. Porque sei que depois não haverá problemas entre nós. Será tudo ainda mais puro e profundo. Melhor do que vivo. E a única coisa pela qual sinto vontade de ter és tu, na totalidade da tua alma. Sem entraves.

De seguida, do nada, tudo muda assim que ouço os meus surdos suspiros.

Caminhava agora num caminho sombrio ladeado de árvores pesadas e brutas sob uma chuva torrencial a caminho de uma mansão nos arredores de uma localidade a um passo inumano. Envergava o mesmo vestido, mas já todo rasgado na bainha e num dos lados, que havia rasgado propositadamente para colocar uma liga onde tinha apenas três armas: uma pistola, um punhal e uma estaca. Entro no interior dessa mansão facilmente, dando um salto sobre o muro alto com um mortal e, de seguida, para uma janela num primeiro andar. Há um corte na acção que me leva imediatamente para uma sala, onde estava uma mulher e um homem. De ambos só conseguia ver as silhuetas, mas sabia que a mulher era bela e maléfica como o Inferno e que o homem era Lewis pois o seu cheiro característico enchia a sala num convite à rendição, que recusei prontamente.

Sem que me fosse concedida a hipótese de chorar a perda valiosa que me enchia o coração, sinto algo a perfurar-me pelas costas. Algo afiado que me dilacerou e me fez cuspir sangue como se estivesse a vomitar. Como última visão, tive a revelação do rosto do homem, Lewis, numa mistura de tristeza, luto e prazer na minha morte. Como última acção, peguei na minha estaca e espetei-a certeiramente no mesmo sítio onde quem estava atrás de mim tinha colocado nas minhas costas. Ao virar-me para encarar o meu assassino, acabou-se o meu sonho antes de poder ver-lhe o rosto.

Fiquei no escuro durante um tempo indeterminado até voltar ao sonho. Fui assolada com um cheiro horrível a morte e a podridão. Abri os olhos e via tudo vermelho e preto, como se estivesse com uma sede de sangue e de vingança tão intensa que afectava a minha visão. Aperfeiçoando melhor a visão, percebi que estava numa cama de dossel, como aquela onde tinha adormecido, e cujas cortinas eram espessas o suficiente para filtrar a luz vinda de uma janela tão alta que me lembrava o tamanho dos vitrais de uma catedral ou igreja. Os lençóis eram de cetim vermelho e a colcha preta, a condizer com as almofadas.

Outro cheiro me apanhou no ar: enxofre. Sem saber porquê, lembrei-me de imediato do Inferno. Do diabo. Como me parecia o homem que tinha ao meu lado, na cama.

Tinha a pele clara e luminosa e os cabelos eram de um louro tão claro que se aproximava do branco. Os olhos eram uma mistura de castanho com vermelho e apesar da sua beleza, algo nele tinha uma função de aviso, um sinal de perigo. Mesmo que os sinais estivessem mesmo à vista, tornava-se impossível deixar um ser destes sozinho. Ele olhava-me de forma penetrantemente indecente e provocadora para mim, como se estivesse mesmo pronto a fazer-me algo, se é que já não o tinha feito.

Finalmente, disse algo.

- É um prazer encontrar-me com uma amaldiçoada de sangue. Devo confessar que é muito melhor do que o que esperava vindo de uma variante da nossa espécia considerada por muitos uma aberração.

Pisquei os olhos, surpreendida.

- Como? Quem raios és tu e que diabos estamos a fazer aqui?

- Chhh… - Disse, apoiando-se num braço virado para mim. Esticou um braço e tocou-me com suavidade no rosto com um dedo causando algo em ambos. – Tão bela e ao mesmo tempo tão rebelde. Perfeita para se tornar na sucessora ao trono da minha espécie.

Aproximou-me com brusquidão dele para me beijar e foi nesse momento que abri os olhos, nauseada com o cheiro que impregnava bruscamente o ar do meu quarto. Levantei-me prestes a vomitar, mas acabei por conseguir apenas abrir a janela que estava atrás da minha cama e deitar a cabeça para o lado de fora. Ainda bem que por baixo desta estava apenas as sebes que rodeiam a casa.

Ao voltar para o quarto, descobri a fonte do cheiro: o saco que se encontrava sobre a secretária de Lewis, mas desta feita, sobre os pés da minha cama. O animal estava desfeito, mas deduzi que fosse um gato persa, a julgar pelo monte de pelo grande.

Levantei-me em pânico, assustada por completo com o que acabo de ver. Olho para o relógio de porcelana situado na mesinha de cabeceira. Nove e meia da manhã.

- Ok, tem calma, não podes gritar, não estás sozinha, o Lewis está por perto, tens a arma, mantém-te atenta… - repetia para mim mesma para me acalmar. Não consegui. Peguei nas almofadas e gritei pressionando-as na cara. A porta abriu-se de rompante, fazendo-me saltar e gritar de novo, mas sem almofadas à frente da boca. Lewis olhou de repente para a cama e correu para perto de mim, colocando-se entre a cama e eu.

- Tem calma, Cassie, está tudo bem. – Disse serenamente pondo as mãos sobre os meus ombros, agora frágeis e trémulos.

- Como queres que tenha calma se acordo a vomitar e a ver gatos persa mortos sobre a minha cama? A feder a sangue?

- Eu sei que isto é chocante, mas tem calma, eu vou tirar isto da tua vista. Fecha os olhos e tenta imaginar a melhor coisa que podia acontecer-te. Tenta cantar alguma música, tenta fazer qualquer coisa, desde que não olhes para a cama.

Nervosa, fiz o que me pediu sem sequer pensar. Tentei esvaziar a cabeça e vasculhar por algo que me pudesse acorrer enquanto ouvia o som de remexer sacos e tecidos. Sem ser solicitado, surgiu-me um acesso da minha capacidade estranha para ver as pessoas. Como Lewis era a única pessoa que estava comigo, foi ele que analisei. O seu cheiro a terra era calmante e o seu coração imóvel apenas me fazia uma pequena confusão. Sem saber porquê, aceitava este facto de bom grado, como se fosse algo que sempre soube durante toda a minha existência.

A sua mente revelava-se preocupada e carregada com um sentimento de culpa. Pudera, pensei, foi do quarto dele que veio o animal! Soltei-me de novo e tentei aprofundar no seu espírito. Não conseguia ver nada de especial, era como se tudo o que fizesse parte de um homem estivesse… morto.

Com o som de algo a cair lá fora, senti os seus braços a envolverem-me, fazendo-me largar as almofadas. Aninhou a minha cabeça no seu peito e beijou-me o cimo desta. As suas mãos, sem terem feito nada de mais além de me susterem contra o seu corpo, faziam-me maravilhas e carícias que nunca havia sentido.

- Acho que deves de precisar dormir no outro quarto enquanto te sentires… em choque com isto. – Disse calmamente.

- Apesar de estar em choque, algo me diz que já sou crescida para isso. – Contrapus.

- Então hoje trocamos.

- Trocamos… o quê? – Disse, erguendo a cabeça

- Ora, de quarto. Não é isso que queres? Não deves sentir-te confortável a dormir acompanhada, principalmente com quem mal conheces.

A minha avó dormia sempre comigo quase todas as noites, pois todas as noites em que dormia na sua cama, era sinal de que eu me contorcia na cama com pesadelos, nos quais os meus pais gritavam sempre comigo e batiam-me como se fosse uma bola de futebol.

Dormir acompanhada, mesmo com um estranho… tinha o contra de mal conhecer Lewis, mas ter sempre um par de braços prontos a acolher-nos quando estamos assustados é muito bom. É o que todos desejam: alguém para consolar nos maus momentos. Para mim, Lewis era o desconhecido que melhor conhecia e era uma boa pessoa, apesar de todos os seus mistérios.

- Não, não quero isso.

- Não queres? Mas isso…

- Significa que tu vais dormir na tua cama…e quanto a mim logo se verá como estarei logo a noite. A avó dormia sempre comigo quando…tinha pesadelos… mas acho que não se justifica neste caso. – Sentia a cara a arder. Ele olhava-me de uma forma que nunca entendi vinda dos homens.

- Não me importo. Desde que fiques segura. – Disse-me pousando a mão na minha cabeça.

Voltei a visualizar o seu interior e prestai atenção ao seu coração. Devia bater! Porque não bate? Eu sabia que estava a ver bem, mas o coração não batia.

Que haverá de errado com ele?

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