quinta-feira, 11 de março de 2010

Capítulo IV - A Perseguição

   Assim que abri o chuveiro e senti a água a enxaguar-me o cabelo esqueci o som que estava a ouvir segundos antes. Esqueci o animal morto e decapitado sobre a minha cama, a repentina aparição de Lewis no quarto e até o inconveniente de ter de limpar a parede por ter vomitado.
   Mesmo assim, apesar de a minha audição estar agora turva, o meu olfacto não estava tão incapacitado. O cheiro a sangue estava entranhado nas narinas e até me agradava, sempre fora um dos cheiros que mais me intrigava, mas ao mesmo tempo gostava.
   Ao fechar os olhos, lembrei-me da noite em que este cheiro me assustou a sério. Tinha cinco anos e estava a dormir em casa dos meus pais. Era uma noite de Verão bem quente e estava sozinha em casa quando acordei com o som de algo a partir. Levantei-me e peguei na vassoura que tinha surripiado à minha mãe e escondido debaixo da cama. Coloquei-a bem perto do peito e fui devagar ao andar de baixo de onde ouvia o sussurrar de duas pessoas. Ao chegar perto da ombreira da porta da cozinha, por onde os meus pais entravam sempre que chegavam para lá da meia-noite, paralisei com o que estava a ver. A minha mãe estava a discutir com alguém, um homem, mas que não era o meu pai. As luzes estavam todas apagadas, por isso o que conseguia ver vinha da luz do quarto minguante e das luzes da rua e como tal, não tinha percebido o que o homem estava a fazer à minha mãe quando enterrou o rosto no pescoço dela.
   Mesmo assim, sentia medo de avançar para dentro da cozinha. O som que o homem fazia era esquisito e, apesar de a minha mãe tentar protestar batendo nele, não conseguia fazê-lo recuar. Numa questão de segundos, o cheiro que mais tarde vim a saber que era de sangue propagou-se no ar, provocando-me vómitos. Deixei-me cair de joelhos, mas quando percebi o que tinha sob as minhas mãos e pernas, já estava ferida. Um copo tinha-se partido e eu tinha pousado as minhas mãos e joelhos sobre os cacos que perfuraram as minhas palmas. Fiz os possíveis para não gritar de dor, mas não consegui evitar um guincho baixo, que coincidiu com o som abafado de algo a cair. Esforcei-me a olhar para a cozinha e vi o corpo da minha mãe no chão e o homem de pé, com a cabeça ligeiramente erguida. No mesmo segundo em que se virou para mim, sem saber como, percorreu o espaço até parar à minha frente. Ajoelhou-se e pegou-me no queixo, erguendo-o e fazendo-me olhá-lo nos olhos. Tinha um olhar sinistro, mas esforçava-se para poder suavizá-lo quando os nossos olhares se cruzaram.
   - És mais especial do que pensas, menina. – Disse. A sua voz estava ligeiramente rouca e tinha o seu queixo e a boca ensanguentados. – A partir de agora, ali a mulher vai querer dar mais sangue, mas nunca encontrará a pessoa ideal para o receber, por isso, coitada vai ter a partir de agora uma vida desgraçada. Mas tu… Tu és um prodígio… - Aproximou-se do meu pescoço. Desejei na altura que eu estivesse a sonhar e que no dia seguinte, quando acordasse, que os meus pais estivessem bem. Tocou com o nariz onde eu estava a sentir a batida do coração, que mais tarde percebi se tratar de uma veia. – Mas, mais tarde ou mais cedo, tu vais desejar não o ser. Não enquanto rejeitares a tua verdadeira natureza. Sinto-o pelo cheiro do teu sangue.
   Então abriu a boca e mordeu-me.
   A partir de então, nunca mais me lembrei de mais nada até à manhã seguinte. E desde então, comecei a gostar do cheiro a sangue e de comer carne mal passada só para poder saborear o pouco sangue que fica nos bifes.
   - Cassandra? – Perguntou Lewis batendo de seguida duas vezes na porta. Lancei um pulo de susto contra o chuveiro.
   - Sim, Lewis?
   - Está aqui a polícia e queria falar contigo.
   Fechei a torneira e saí de imediato da banheira . Abri a porta e deparei-me com Lewis em frente desta a olhar para mim enrolada na toalha e toda molhada como um trapo acabado de sair da lavagem. Tinha um pijama largo azul-escuro e o cabelo estava perfeito na desorganização em que estava. A franja abria-se de forma a fazer pontas de lanças na cara e o resto estava todo para a frente, envolvendo o pescoço e deixando-me uma sensação esquisita.
   - Quem é que está aí? – Perguntei tentando distrair-me da sua beleza. Como uma pequena mudança no estilo do cabelo pode fazer milagres!
   - A polícia. Não sei como, descobriram que estavas aqui.
   - Disseram-te o que queriam?
   - Não. Vai lá que eu trato disto aqui.
   Fui num instante ao meu quarto para trocar a toalha pelo meu roupão peludo, desci as escadas a correr e deparei-me com dois agentes da polícia no hall de entrada.
   - Bom dia, senhores agentes. Passa-se alguma coisa? – Perguntei.
   - Menina Gohstly. – Disse o agente de cinquenta anos de cabelo grisalho. – Sou o agente Mayer e esta é a agente Zane. – A mulher loura de olhos verdes acenou-me com a cabeça, pelo que respondi da mesma forma. – Estamos aqui devido a um crime.
   - Um crime, agente Mayer?
   - Mais propriamente, o assassinato dos seus pais, Paul Gohstly. – Explicitou a agente Zane.
   - A casa dos seus pais fora atacada na noite passada e o seu pai teve morte imediata. A sua mãe sobreviveu por mais um tempo e disse-nos que sabia que a menina estava aqui. – Completou o agente Mayer.
   - Têm já alguma noção do que terá causado a morte, senhores agentes? – Interroguei.
   - Ao que parece, foram degolados, mas devido à ausência de sangue na casa, presume-se que o crime tenha acontecido noutro local, mas não muito longe da habitação. – Retorquiu o homem
   - Estamos aqui para lhe fazer umas perguntas. – Disse a mulher. – Pode-nos dizer onde esteve ontem à noite?
   - Sim. Eu faço umas horas no Old Burger e vim para casa entre as onze e as onze e meia da noite. Quando cheguei, jantei e fui-me deitar.
   - A sua mãe, pouco antes de morrer, confessou que fugiu de casa. É verdade?
   - Tecnicamente, fui expulsa. Há uns dias que estou aqui.
   - Expulsa? – Perguntou o agente Mayer.
   - Sim. Na semana passada, a minha mãe espancou-me e o meu pai deu-me dinheiro e as chaves do carocha que vocês devem ter visto em frente da casa. Estava numa fábrica onde ele trabalhou.
   - E então, veio para cá? Para casa da sua avó? – Perguntou a agente Zane.
   - Sim. Era o único sítio que tinha para vir.
   - E quem é este rapaz? – Perguntou, apontando para Lewis com a caneta que estava a usar para os seus apontamentos, que estava estático como uma estátua e sério como um juiz no primeiro degrau das escadas para o primeiro andar, encostado ao corrimão.
   - Ele é amigo da família. – Só me apetecia pontapeá-los até saírem da agora minha casa só por terem feito aquela pergunta.
   - Mas é verdade que a menina ainda é menor, certo? – Perguntou o agente Mayer.
   - Sim. Ela é menor, mas falta poucos dias até se tornar maior. – Intrometeu-se Lewis.
   - E que idade tem o senhor?
   - Vinte e três. Estou aqui na qualidade de tutor temporário. - Disse Lewis num tom e numa expressão que me assustou um pouco, mas que me atraia ainda mais.
   - Qual é o seu nome? – Perguntou o agente.
   - Lewis Desdrov. Tenho origens russas por parte do meu pai.
   - E o que o trouxe por cá?
   - Vim visitar a senhora Janette, mas desconhecia que já tinha falecido. Era amigo do casal.
   Os agentes olharam um para o outro e percebi o acenar de cabeça que o olhar de ambos continha.
   - Bem, penso que seja tudo por agora. Em breve entraremos em contacto consigo. Suponho que queira saber o resultado a autópsia. – Disse a agente Zane, numa tentativa de me fazer baixar as defesas.
   - Tenho uma certa curiosidade, sim. – Disse, cruzando os braços numa postura de “não consegues o que queres”.
   - Então, em breve entraremos em contacto consigo.
   - Está bem. Tenham um bom dia. – Disse enquanto os conduzia para a porta. Assim que se dirigiram para o carro, fechei a porta e encostei-me a ela, olhando para Lewis que ainda tinha aquele ar carrancudo.
   - Está tudo bem? – Perguntei receosa.
   Ele olhou-me nos olhos bem a fundo, tentando perceber algo em mim que lhe estava a escapar. Passados alguns segundos, respondeu virando a cabeça para o lado da cozinha.
   - Sim. Agora está tudo.
   - Não gostas muito da polícia, pois não? – Indaguei a fim de aliviar o ambiente. Antes de ter uma resposta, tive de esperar também um pouco até ele decidir falar. Algo não estava bem para ele e ficou assim desde que eu acordei.
   - É por não gostar muito da polícia que eu sou detective por conta própria.
   Respirei fundo e decidi ir directa ao assunto.
   - OK, vamos lá a ver. O que se passa? – Perguntei enquanto ia na sua direcção a passos largos. Quando parei à frente dele, ele olhou-me para o mesmo sítio onde o tal homem tinha olhado, para a minha jugular que pulsava o meu sangue.
   - Nada. Apenas acordei de mau humor hoje. – Respondeu numa nítida e fracassada tentativa de me fazer esquecer o assunto. – Desculpa. – E foi para a cozinha. Irritada segui-o. Ele estava a tratar de me fazer uma tigela de cereais de mel.
   - Lamento a morte dos teus pais, apesar de deduzir que não lamentes assim tanto. – Disse num tom que me fez quase sentir mesmo pesar de ter perdido os meus pais. Eles nunca me trataram como o termo “pais” diz que um casal com filhos deveria ser. Sempre me rejeitaram, não mereciam que sentisse qualquer pena deles. Apesar de tudo, eram humanos e não deixavam de ser muito próximos de mim, nem que fosse biologicamente, mas as suas perdas afectavam-me um pouco. O facto de ter percebido o tom de Lewis com exactidão apenas contribuiu para a pena aumentar.
   - Estás certo, não lamento. Mas também não festejo as suas mortes. Apenas encaro como o fim da minha opressão e lamento que não tenham sabido ser bons pais.
   Ele assentiu em silêncio e olhou-me nos olhos. Apesar de a sua expressão ser séria, percebi que havia de facto um brilho estranho nos seus olhos escuros que me atraía para ele. Este relance fez-me perceber que confiava cegamente em Lewis sem saber porquê. Ele assemelhava-se de facto a um primo que estava a passar o Verão em minha casa, comparação que não fugia muito da realidade.
   Que tal voltares para a terra e agires como um ser humano minimamente normal, Cassandra?, ordenou a vozinha sensata.
   - Como sabes que eu gosto de cereais de mel? – Perguntei sentando-me na bancada da cozinha ao seu lado.
   - Uma pessoa como tu, ainda com dezassete anos e mesmo que seja muito madura e, no teu caso, um pouco infantil gosta sempre de algo doce.
   - Hey! Eu não sou nenhuma criança!
   - Pois não. – Disse entregando-me a tigela brindada com um sorriso divertido e fantástico. – Mas todos temos um lado infantil, não achas?
   - E tu, tens?
   - Nem por isso. – Admitiu.
   - Ora essa. Como pode alguém como tu, que diz não ter muita infantilidade, dizer que todos somos infantis?
   - Eu disse que todos temos um pouco de infantilidade, o que é diferente de sermos infantis. – Retorquiu.
   - Como queiras. – Disse metendo uma colher de cerais na boca.
   Ele estava a olhar para o jardim na janela à sua frente. Ao olhar para ele, lembrei-me da minha avó. Ela adorava ficar comigo enquanto comia e quando não me acompanhava a comer, ficava também a olhar para a rua.
   - Euhm… Lewis?
   - Sim, Cassandra? – Respondeu, abstraindo-se de imediato da rua e concentrando-se em mim.
   - Como conheceste os meus avós?
   Ele olhou-me com calma, a sua expressão era pensativa.
   - Conheci-os quando foram passar férias a Vancouver. A minha mãe já conhecia a família do teu avô, só de vista, mas nesse Verão a patroa da minha mãe apresentou-os. Desde então as nossas famílias são muito próximas.
   - Mas não me pareceu que esta fosse a primeira vez que vieste cá…
   - Pois não. Dois anos depois de termos conhecido os teus avós, viemos cá visitar os teus avós… e a netinha deles. – Completou-me a frase com um sorriso malandro nos lábios. Quase me ia derretendo. Quase porque consegui ficar consciente a ponto de estar atenta ao que ele estava a dizer.
   - Tu conheceste-me quando ainda era pequena?
   - Sim. E peguei-te ao colo. – Respondeu, virando-se para o interior da cozinha. – foi a primeira vez que peguei num bebé.
   - A sério? – Perguntei, com metade de uma colher de cereais na boca. – Que idade tinhas na altura?
   - Quase treze.
   - A sério?
   - Sim. – Virou-se na totalidade para mim e aproximou-se perigosamente de mim, tão perto que o seu hálito podia chegar a mim. – E foi fantástico. Nesse dia não paravas quieta mas assim que te peguei e te embalei, acalmaste e adormeceste. Ficaste horas no meu colo.
   Não sabia que dizer para além de “a sério?”, mas impedi-me de repetir mais uma vez essa pergunta. Optei por engolir o resto do meu pequeno-almoço e deixar-me deleitar-me com a profundidade dos seus olhos. Ao ver que não dizia nada, sorriu e continuou.
   - Foi a primeira e última vez que te vi. Passaste quase um dia inteiro nos meus braços, apenas acordavas quando tinhas fome e mesmo assim não deixaste a tua avó alimentar-te.
   - Foste tu que me alimentaste?
   - Sim, fui. Tinhas o cabelo dois ou três tons mais claro do que é hoje e as faces muito rosadas. Os teus olhos já eram desse exacto tom escuro.
   A voz distanciou-se dos meus sentidos até ficarmos ambos a olhar um para o outro por poucos segundos. Nunca consegui olhar fixamente para os olhos de outra pessoa durante mais do que uns segundos, mas desta vez devo ter batido uma espécie de record. Até ele ter cortado o silêncio.
   - Olha, ainda há por aqui uma biblioteca, pois não?
   - Euhm, sim, há junto à escola. Precisas de ir lá?
   - Sim, preciso de ver uns registos.
   Olhei para o relógio da cozinha, que apontava para as onze.
   - Acho que a biblioteca não fecha para almoço. Queres ir lá agora?
   - Pode ser. – Disse afastando-se da bancada.
   Desci da bancada da cozinha e comecei a lavar a tigela.
   - Deixas-me só vestir algo mais decente?
   - Pode ser, até porque não conheço bem a biblioteca. – Tornou enquanto tirava o telemóvel e começava a teclar. – Aproveito para fazer umas chamadas.
   - Então dá-me só dois minutos. – Dei-lhe um sorriso rápido e galguei escadas acima. No roupeiro encontrei uma camisa lisa preta que costumava usar com uma camisola branca que, numa vez em que tive de pintar um painel para a peça que a minha turma organizou na escola, ficou toda salpicada com tinta preta e vermelha numa sessão de guerra de tinta que fora improvisada na mesma, e juntei umas calças tão rasgadas que haviam farrapos dos buracos que ficavam pendurados e umas sabrinas pretas. Peguei num par de lápis da cor da madeira e dividi o cabelo, enrolando de seguida as metades com os lápis. A maquilhagem foi a mesma de sempre: eyeliner preto em redor dos olhos.
   Antes de descer as escadas, meti o telemóvel, um pequeno bloco de notas e as chaves nos bolsos das calças. Quando cheguei à porta, meti na pequena mala de ganga preta com lantejoulas a carteira e transferi para lá o bloco de notas antes de fechar a porta e deparar-me com Lewis no banco do condutor do meu belo carocha.
   - Tu consegues conduzir esta carripana? – Perguntei quando entrei no carro.
   - Claro que consigo! – Retorquiu num tom animado e arrancando do bairro com uma suavidade que nunca consegui.
   A biblioteca encontrava-se na parte de trás da escola, mesmo pegada a esta, mas todos podiam lá ir. O sistema informático não era nada de especial, tinha aquela tecnologia de última que apenas se usam em dez habitações por quilómetro quadrado e porque os adolescentes viciados nas tecnologias faziam pressão nos pais para gastarem montes de dinheiro com programas e computadores de ponta.
   Apesar deste contra, a biblioteca sempre foi um bom local para mim. Passava os meus intervalos escolares entre livros e eram muitos os dias em que eu ficava até tarde a fazer que trabalhava para a escola. A verdade é que sempre tive problemas de preguiça, para além dos de coração que me impediam de fazer grandes esforços físicos. Claro que isso não me retirava a prática total das aulas, mas a professora, recém-formada e com muita mostarda no nariz, adorava massacrar-me com trabalhos. Como as minhas capacidades de preguiçar eram muito boas, raramente fazia algo de muito bom. Assim sendo, optava sempre por ler os romances e a banda desenhada na Internet, mas a japonesa e nunca a americana, pois a última era só de homens musculados a salvarem Barbies frágeis, enquanto as japonesas abordavam mais temas e eram mais cómicas.
   Ao entrarmos, fomos agraciados pela boa disposição de Stacie Charlie, a bibliotecária de serviço quase permanente há quase dez anos.
   - Oh, bom dia Cassandra! Há quanto tempo já não te via querida! Está tudo bem? – Cumprimentou com uma boa disposição sussurrante, mas mesmo assim aguda. Olhava para Lewis com um ponto de interrogação a forçar o espaço entre as sobrancelhas a uni-las ao mesmo tempo que o interesse em regalar a vista exercia o efeito contrário ao mesmo local. Reprimi uma expressão menos simpática e uma boca mais possessiva. Ela tinha dez anos a mais que eu, mas os cabelos cor de mel e os olhos castanho-claros davam-lhe um ar muito mais novo.
   - Olá, Stacie. Sim está tudo. Sabes como é, quando se acaba o ensino, corta-se o tempo para continuar com os hobbys.
   - Verdade, Sandra, verdade. – Ela adorava chamar-me Sandra em vez de Cassie. Dizia-se pelas bocas de Old Springs que teve uma filha de um dos seus vários namorados, à qual queria chamar Sandra, mas o aborto espontâneo que teve tirou-lhe essa possibilidade. – Então, precisam de alguma ajuda? – Perguntou com o olhar a colidir com a figura de Lewis, para a qual olhei como quem queria dizer “pois, agora é contigo”. Ele sorriu de forma muito formal e retorquiu.
   - Gostaria de saber se têm livros que possam falar da história da vossa pequena cidade, por favor.
   Stacie ia-se derretendo com aquela voz, mas antes de ela sequer se poder maravilhar com ele, já estava eu a ter um colapso no coração com aquela maravilhosa formalidade.
   - S-sim, claro, poderá encontrá-los no quinto corredor no segundo bloco. Com certeza que a Sandra poderá ajudá-lo. – Indicou, dirigindo relutantemente o olhar para mim, mas oferecendo-me uma expressão que dizia “sortuda”.
   - Claro, Stacie, fica descansada. Com certeza precisas de tratar da papelada do costume. – Respondi e virei-me para o corredor que se encontrava quase perto da parede oposta à da entrada. A biblioteca era grande, de dois pisos onde o segundo era mais indicado para quem prefere trabalhar nos computadores. O piso onde nos encontrávamos tinha uma óptima colecção de livros e havia um corredor transversal aos restantes, dividindo as estantes por blocos.
   A caminho desse corredor, olhei casualmente para trás e deparei-me com Stacie a olhar com cobiça para Lewis. Ao olhar de novo para a frente, encontrei Lewis virado para mim. Ia batendo nele de frente se ele não me tivesse agarrado nos ombros, com gentileza.
   - É impressão minha, ou estavas a observar a bibliotecária? – Perguntou ao mesmo tempo que baixava a cabeça para ficarmos ao mesmo nível e enchendo a voz de um sopro sussurrante, doce e íntimo.
   - Quem? Eu? Não, é só impressão tua!
   - Então, é também impressão minha, ou estavas a observá-la porque tens ciúmes?
   - Estás parvo ou o quê? Eu não sou assim tão primitiva. – Respondi tentando parecer despreocupada. Em contrapartida, o fluxo de sangue que me subiu à cara denunciou-me e deliciou-o nitidamente. Ele aproximou a sua face da minha e suspirou sobre o meu pescoço, enviando uma camada leve e intensa de arrepios para a coluna.
   - Tal como imaginava, tu tens ciúmes. – Sussurrou com uma voz profunda. – Isso deixa-me em parte lisonjeado, mas será que esses ciúmes têm fundamento?
   Afastou-se e pude observar, com agrado, a sua tentativa de mostrar um semblante sério, mas que, a meu ver, era algo falhada. Em conclusão, agradava-me ver aquela expressão.
   - Ora, ora, ora, Lewis Desdrov. Não é preciso mostrares-te sério e um tanto ou quanto desagradado com tal. Muito pelo contrário, pelo que vejo, tu gostas até muito de ter alguém que seja um tanto ou quanto possessivo contigo, não achas? – Respondi com falso azedume e endireitando as costas. Para a imagem ficar no sítio certo só faltava espetar um dedo entre nós, mas a ideia era ser tão falsa como a sua tentativa de esconder o seu agrado.
   De repente e em simultâneo, algo nos chamou à atenção. Virámos a cabeça para a minha esquerda e vimos um vulto a esconder-se atrás de uma das estantes, quase encostado à parede. Pelo que percebi, tinha o cabelo espetado em todas as direcções e era pequeno e muito magro. Franzi o sobrolho.
   - Acho que alguém gosta tanto de nós que nos está a observar. – Disse Lewis, com calma, como se estivéssemos a comentar a cor da camisola de Stacie Chralie.
   Franzi o sobrolho e concentrei-me no que tinha a procurar, mas sem querer, acabei por ver o seu corpo. O coração não batia, mas o sangue era bombeado com uma velocidade improvável para um humano e tinha uma cor ainda mais escura do que o nosso sangue venoso normal. Os seus passos eram ponderados e o mais silenciosos possível.
   - O que disseste, Cassie? – Interrogou Lewis, apertando-me o ombro para me captar a atenção.
   - Desculpa, o que disseste? – Tornei, a piscar os olhos.
   - Estavas a dizer algo e tinhas o olhar baço e ainda mais escuro do que o costume.
   Comecei a gaguejar.
   - Eu acho que aquela pessoa está quase a bater a bota.
   - Porquê? – Perguntou lenta e profundamente com olhar inabalavelmente fixo no meu. Sem saber porquê, senti-me bem, leve e calma, tal como se estivesse num sonho. Ele pousou as mãos em ambas as faces e continuou a olhar para mim. – Está tudo bem, Cassie, podes-me contar. – Insistiu, ainda com a calma e a doçura de uma brisa.
   - O sangue é ainda mais escuro do que o nosso sangue venoso e o coração apesar de estar parado, o sangue é bombeado a uma velocidade superior do que o de uma pessoa a ter um enfarte. Não sei porquê, consigo ver o seu coração como a todos, mas não consigo chegar-lhe à mente como faço com o resto das pessoas. Ele percebeu que foi visto e está a andar devagar, mas não como um doente mas sim como uma pessoa que está a esconder-se de alguém. – Debitei como se estivesse a responder a fazer um pedido num restaurante. Não conseguia desviar o olhar e também a minha mente não punha sequer essa hipótese.
   Lewis olhava para mim e para o local onde o tínhamos visto. Com estas pausas, eu consegui voltar a sentir o mundo e foi como se não comesse há dias a fio. Senti os joelhos a fraquejar, mas ele foi rápido o suficiente para me abraçar e amparar-me. Levou-nos para um corredor à minha direita e encontrámos uma pequena mesa com uma cadeira para quem prefere ficar sozinho. Ele optou por me sentar na mesa e encostar-me à prateleira que se encontrava mesmo pegada à mesa. Ainda com a mão nas minhas costas a amparar-me olhava à nossa volta.
   - O…que se passa, Lewis? – Perguntei fraca e zonza.
   - Tiveste uma espécie de micro-desmaio. Perdeste os sentidos por um segundo. – Disse tão depressa que acho que não ia conseguir acompanhá-lo.
   - Aquela pessoa que estava a seguir-nos…
   - Não digas nada, apenas não desmanches a peça. – Interrompeu, fazendo-me levantar da mesa e espalmar-me entre ele e a prateleira. Ele tinha-me segura com apenas um braço e com o outro dirigiu os meus lábios para os dele.
   Era uma manobra de diversão para alguém que estava a pensar que estávamos a fazer algo de errado. Era esta a desculpa de muita gente que fazia distúrbios: faziam que estavam a namorar para não serem importunados com a sua queda para o distúrbio. Stacie Charlie não ligava a isso, pois ela mesma tinha as suas escapadelas com o director da escola. Muitas foram as vezes em que eu apanhei-a aos beijos com ele no gabinete privado da biblioteca, a poucos passos de onde nós estávamos.
   Mas como podia estar a pensar nela se estava outra vez enrolada com Lewis? Ele que agora acariciava-me o rosto e o pescoço tinha um jeito especial em distrair-me do mundo, até das escapadelas eróticas de Stacie, que nunca regulou bem. Aos poucos, comecei a despertar do meu micro-desmaio e aproximei-me mais dele, acabando por me encaixar nele na perfeição. Ao longe pareceu ouvir um som de espanto e resignação, pelo que ignorei com distinta arrogância. Ele levantou-me e ficámos ao mesmo nível a aproveitar melhor o nosso beijo.
   Por fim e cedo demais para mim, Lewis Abrandou o ritmo regularmente até ficarmos apenas a dois dedos de distância.
   - Achas que já nos livrámos da bibliotecária? – Interrogou com a voz roca, lenta e sufocada.
   - Se não o fizemos, é porque talvez não fosse ela. Mas era para despistar alguém que me beijaste? – Sussurrei.
   Antes de responder, dirigiu mais um olhar faminto de desejo aos meus lábios.
   - Era, mas distraí-me. No bom sentido. – Confessou. Confesso que foi a melhor confissão que ouvi, pelo que corei logo de imdetiado.
   - Onde estará o nosso fã? – Perguntei.
   - Já saiu. Ele passou também por nós. – Respondeu, nada agradado com tal.
   - Achas que é perigoso? – Aprofundei.
   - Acho que terei de o seguir para o saber. – Disse, um pouco descontente, zangado e embaraçado.
   - Posso ajudar-te? – Indaguei envergonhada.
   - Como?
   - Posso segui-lo contigo. Se formos já atrás dele ainda somos capazes de o apanhar. – Expliquei já a preparar-me para a acção. Senti uma onda de adrenalina a percorrer-me o corpo, mas ele não me largou.
   - Tens a certeza? É perigoso. – Disse, passando com uma mão no meu cabelo e juntando-o ao meu corpo.
   - Sim, tenho. Ele não é nada de bom e algo me diz que é importante.
   - Então, vamos. – Disse, pegando-me na mão e dirigindo-se para a saída.
   - Não. Espera. – Pedi, travando-lhe o andar puxando-o para mim de novo. Ele olhou-me confuso, mas em vez de seguir o que a minha mente tresloucada me pedia – pôr-me em bicos de pés e retribuir-lhe o beijo – mas em vez disso, galguei para o lado do gabinete dos funcionários da biblioteca.
   - Para onde estamos a ir? – Perguntou, num misto de curiosidade com malandrice.
   - Vamos fazer uma prova de saltos, Lewis. Vamos sair pela janela e parar ao parque de estacionamento da escola. Tenho uma ideia de que ele foi burro ao ponto de ter vindo de carro.
   O gabinete era algo pequeno, com uma secretária, cadeira, computador retardado com o Windows98, uma pequena estante e um bengaleiro simples. Tinha uma janela grande demais para o meu gosto, principalmente para um local que era pouco frequentado. Mas felizmente agradeci aos gostos peculiares por homens formais de Stacie Charlie e abri a janela, saltando de seguida para o exterior. Apesar do meu problema de coração, ainda sabia fazer uns malabarismos todos malucos, para meu orgulho.
   Ao pousar no chão, pus-me logo atrás de um arbusto que era suposto ser bem aparado, mas os miúdos adoravam estragar as coisas, pelo que a forma de bola que era suposto ser era irregular e disforme. Olhei de relance para trás, a tempo de ver Lewis a saltar da janela com uma classe inimaginavelmente fantástica. Voltei a minha visão para o parque de estacionamento e observei o nosso seguidor que dirigia-se para o parque de estacionamento. Quando senti Lewis atrás de mim, perguntei sem tirar os olhos do suspeito.
    - O que me fizeste para me dar aquele “micro-desmaio”, como tu disseste? – Não soube porquê, apenas sabia que tinha de perguntar aquilo porque sabia igualmente que ele me fez algo para eu perder os sentidos.
   - Eu não fiz nada. Perguntei-te o que se passava e tu desmaiaste.
   - Mentes. Eu sei qual foi a minha resposta.
   - Depois falamos acerca disso, temos de o seguir.
   Ele estava certo. Não podíamos queimar tempo com coisas tão insignificantes como aquela com a qual estávamos a lidar. O nosso seguidor ia para um Honda Civic vermelho, onde parou e começou a fazer uma chamada. Eu e Lewis, instintivamente, seguimos direitos ao primeiro carro que estava mais próximo de nós e parámos cada um junto a uma das rodas do carro. Pareceu-me ouvir algo a filtrar a voz do rapaz e levantei a cabeça devagar para o ver de costas.
   - Sim, chefa, eles foram para a biblioteca local…Porque fiquei com a sensação de que eles me viram… - Dizia o rapaz, ainda virado de costas ainda para nós. Sem saber para quê, pus-me de cóqueras e segui caminho até parar no carro ao lado do Honda. Lewis Veio atrás de mim com cerca de dez segundos de diferença e parou ao meu lado.
   - Porque vieste para aqui? – Sussurrou a resmungar com a irritação patente na cara. Belisquei-lhe o braço e fiz sinal para se calar. O rapaz já estava virado para outro lado e continuava a responder às perguntas do outro lado da linha e a fazer o relato do que viu de nós, ou seja, completamente distraído da possibilidade de ser seguido.
  Lewis puxou-me para ele, passou um braço pelos meus ombros, causando-me uma carga fresca de arrepios, e sussurrou ao meu ouvido:
   - Vai distraí-lo para o pegarmos de surpresa. Limita-te a fazer o teu papel e tenta não dar a entender que eu vou assustá-lo.
   - Como assim, distraí-lo? - Nem resmunguei mais quando ele me lançou uma cara de comando séria. – Ok, entendi, pergunta estúpida. – Corrigi, levantando-me com a maior casualidade que me fosse possível. O rapaz virou-se de repente, assustado e suspeito, mas assim que me viu acalmou-se, mostrando-me um sorriso amarelo. A cara dele era um filme de terror, tinha uma cicatriz muito profunda atravessar metade da face direita, mas parecia não ser uma pessoa resignada com a vida. Em vez de guinchar de susto, engoli o mesmo e mostrei-lhe um sorriso tímido e simpático.
   Olhei por casualidade para trás, como quem estava à procura de algo, para onde tinha deixado Lewis, mas agora só lá estava mesmo o sítio. Estava inteiramente por minha conta, pensei quando me virei e deparei-me com o rapaz a desligar a chamada.
   - Desculpe, eu ando à procura das minhas chaves. Tenho a sensação de que as deixei por aqui. Não viu um porta chaves de um panda com um monte de chaves por aí? – Perguntei, suavizando a minha voz, tornando-me vulnerável e inocente, coisa que pareceu agradá-lo. Ele sorriu-me abertamente e respondeu com voz de bagaço.
   - Não, não vi. Desculpa lá. – Respondeu fintando-me o corpo de alto a baixo, o que me revoltou até o estômago. – Mas deixa-me ajudar-te a procurá-las.
    Em vez de deixar que o meu corpo se aproximasse do dele e lhe pregasse um pontapé no meio das pernas, sorri-lhe e fiz de conta que estava à procura delas, mas na realidade estava à procura de sinal de Lewis.
   De repente, senti umas mãos demasiado perto do meu rabo. Ergui-me num tiro e deparei-me com a cara de atrevido do rapaz.
   - Talvez te possa antes dar-te uma boleia aonde tu quiseres. – Disse num tom que me lembrava um pote de mel caído ao chão, tornando-o nojento.
   - Não, obrigada, prefiro mesmo saber das minhas chaves. – Disse tentando soar de novo inocente.
   - Não, eu insisto. – Tornou ele a começar a aproximar-se de mim. No instante em que me ia tocar, senti os seus dedos pequenos a agitarem-me as pontas do cabelo, fazendo-as voar um pouco, e vi Lewis a imobilizá-lo. Não gostei nada da cara dele.
   - Quem te mandou seguir-nos? – Perguntou ferozmente.
   - Quem o quê? N-não sei de que falam. – Respondeu o rapaz assustado.
   Lewis apertou os braços, fazendo o pescoço e ombros do outro doerem.
   - Quem te mandou seguir-nos, seu ignóbil insecto? – Repetiu Lewis.
   - Aline. – Disse o rapaz a tentar abafar as lamúrias de dor. Tanta demora, em plena luz do dia e num local púlbico irritou-me de tal forma que quase senti uma fera a rasgar-me de dentro para fora quando explodi e comecei a participar activamente no interrogatório.
   - Aline quê, seu estupor abusador? – Disse eu aproximando-me com uma voz ironicamente doce, apesar da raiva tão grande que alterava o meu vocabulário. – Não nos dizes? – Continuei em tom já a transformar-se decepcionado. Olhei para os genitais dele e tive uma luz para o torturar. – É, de facto, uma pena, meu.
   - Cassie. – Chamou-me Lewis com espanto e talvez pânico na voz. O seu olhar mostrava preocupação de tão arregalados que estavam.
   - Relaxa, Lewis. – Disse, levantando uma mão e baixando-a de seguida para o meio das pernas dele, que comecei a apertar sem me importar com a dor que o rapaz tinha.
   - Qual é o apelido dessa Aline? – Repeti vendo o olhar do rapaz tornar-se vítreo de tanta dor. Sorri maliciosamente.
   - Yevenko. Aline Yevenko. – Respondeu.
   Olhei para Lewis, que observava o espaço vazio com fúria. Com brusquidão, largou o nosso seguidor e pregou-lhe um pontapé muito forte nas costas, fazendo-o cair e sibilar de dor perto do carro onde se tinha encostado.
   - Diz a ela que não vai ficar com as presas à mostra durante muito tempo. – Avisou Lewis, ameaçadora e assustadoramente a explodir de raiva. Pegou-me no braço com tanta força que me magoou e levou-nos do parque de estacionamento para fora.
   Foi a última coisa que vi, o seu ar de raiva, quando desmaiei.

1 comentário:

  1. Está muito bom * continua escritora ...
    Não te esqueças de me chamar para Cassie quando for levada a série :p

    eheh

    Leya

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